O Globo, n. 32653, 31/12/2022. Opinião, p. 3

Final melancólico

Pablo Ortellado


Depois de dois meses de silêncio, no último dia útil do seu governo, Bolsonaro falou. Foi elíptico e evasivo sobre os temas importantes e fugiu logo em seguida para os Estados Unidos. Foi um final melancólico para uma aventura perigosa. A democracia brasileira sobreviveu, mas saiu chamuscada. Ganhamos um respiro, mas o risco não foi de todo afastado.

A maior parte do pronunciamento de mais de 50 minutos foi dedicada a celebrar as realizações do governo. Mas, entre louvores ao preço baixo dos combustíveis e à criação do Auxílio Emergencial, surgiram alertas sobre a volta do PT e justificativas para ele não ter atendido aos radicais acampados nos quartéis. Tudo sob uma chuva de comentários de espectadores no YouTube pedindo intervenção militar.

Bolsonaro disse que, nestes dois meses de silêncio estratégico, não ficou parado: “Como foi difícil ficar dois meses calado trabalhando para buscar alternativas!”. As alternativas, sabemos pelas movimentações noticiadas pelos jornais, foram a busca do apoio das Forças Armadas e do Parlamento para uma ruptura autoritária.

Reunindo as menções elípticas, espalhadas pelos discurso, dá para ter uma ideia do que ele quis dizer: “Tem gente chateada comigo, [dizendo] que deveria ter feito alguma coisa, qualquer coisa. Mas, para você conseguir fazer alguma coisa, mesmo nas quatro linhas, você tem que ter apoio”. E se defendeu: “Entendo que fiz a minha parte, estou fazendo a minha parte. Agora, certas medidas têm que ter apoio do Parlamento, de alguns do Supremo, de outros órgãos e instituições”.

Bolsonaro quis atender aos golpistas acampados nos quartéis, mas simplesmente não conseguiu apoio. “Não posso fazer algo que não seja bem feito e que, assim, os efeitos colaterais sejam danosos demais”, concluiu. Bolsonaro não teve ou não conseguiu criar as condições para cumprir seus propósitos autoritários. Mas tentou. Enfrentou, porém, a resistência firme da sociedade civil e da imprensa séria.

Enfrentou também a resistência do Parlamento, principalmente quando esteve sob a liderança política de Rodrigo Maia e Davi Alcolumbre. Em nenhum momento o Parlamento sinalizou que daria apoio a um movimento de ruptura, por meio da decretação de Estado de Sítio. O Congresso conteve a ofensiva legislativa na arena dos costumes e moderou os ataques de Paulo Guedes contra os direitos dos trabalhadores. Foi o Parlamento, também, que elevou os programas de transferência de renda a um patamar mais digno, aumentando o valor e ampliando a cobertura. O Parlamento, por meio da CPI da Covid, também desvelou a irresponsabilidade criminosa de Bolsonaro com relação à compra das vacinas.

Bolsonaro enfrentou também a resistência da Justiça. O Supremo Tribunal Federal (STF) anulou alguns dos ataques mais danosos ao sistema de proteção ambiental e deu autonomia aos governadores para que pudessem proteger a população no momento mais crítico da pandemia. Quando as mobilizações golpistas se disseminaram, foi a ação firme do ministro Alexandre de Moraes que as conteve. Sem a mão dura dele, é bem possível que não tivéssemos chegado até aqui.

Servidores públicos no ICMBio, na Polícia Federal e no Ministério Público também desafiaram as orientações políticas dos chefes e batalharam para fazer as instituições cumprir suas funções legais.

Sem os limites impostos pela sociedade civil, pela imprensa, pelo Parlamento, pela Justiça e por corajosos servidores públicos, não teríamos atravessado o deserto. Devemos a cada um desses atores um caloroso “obrigado”.

Durante quatro anos, Bolsonaro repetiu que a “liberdade” deveria valer mais que a própria vida. Mas, agora, quando teria de colocar seus ideais à prova, preferiu fugir para os Estados Unidos, temeroso de que, com a volta do domínio da lei, seus crimes sejam investigados e ele termine devidamente preso. É inevitável comparar a ignomínia de Bolsonaro com a altivez de Lula, que, podendo fugir, se submeteu com dignidade a mais de dois anos de prisão. Bolsonaro não é pequeno, é minúsculo.

A fuga no avião presidencial, deixando seus apoiadores tomando chuva e passando vergonha na porta dos quartéis, é o desfecho patético de um governo medíocre, covarde e autoritário.