O Globo, n. 32653, 31/12/2022. Política, p. 4

Rito ignorado

Jussara Soares
Daniel Gullino
Dimitrius Dantas


A dois dias de encerrar o mandato, o presidente Jair Bolsonaro viajou ontem para os Estados Unidos, ignorando o rito democrático das trocas de poder e abdicando de entregar a faixa presidencial ao seu sucessor, Luiz Inácio Lula da Silva, que vai tomar posse amanhã. Antes de embarcar, pela manhã, o chefe do Executivo quebrou o silêncio e realizou um pronunciamento ao vivo pelas redes sociais. Na transmissão, ele chorou, falou pela primeira vez a respeito do futuro governo e condenou atos terroristas de seus apoiadores. Ao abandonar o mandato pelo qual foi eleito em 2018, Bolsonaro despreza uma tradição democrática de quase quatro décadas. Isso não acontecia desde 1985, quando João Figueiredo, último presidente da ditadura militar, apesar de estar no Brasil, não compareceu à cerimônia de posse do seu sucessor, José Sarney. Bolsonaro embarcou por volta das 14h num avião da Força Aérea Brasileira (FAB) rumo à Flórida, nos EUA. A previsão é que ele fique ao menos um mês fora do país. O presidente deve passar os primeiros dias em Orlando e depois seguir para Miami. Ao deixar o Palácio da Alvorada ontem, ele não saiu pela porta da frente do local que foi sua residência por quatro anos. Recorreu a um acesso lateral, despistando apoiadores, que ficaram contrariados e criticaram Bolsonaro.

O governo federal não deu qualquer informação a respeito da viagem e tampouco informou quem embarcou na aeronave. A edição de ontem do Diário Oficial da União informa apenas que assessores que costumam acompanhar o presidente da República permanecerão no exterior no período de 1º a 30 de janeiro. Com a saída do chefe do Poder Executivo do país, o vice, Hamilton Mourão, despacha como presidente em exercício. Diferentemente do que ocorreu em outras ocasiões, o presidente não se encontrou com Mourão na Base Aérea do aeroporto de Brasília para passar o bastão do Palácio do Planalto. Desta vez, Bolsonaro enviou apenas uma mensagem de texto ao vice para informar-lhe que havia três decretos pendentes de despachos presidenciais. Mourão respondeu desejando "boa viagem" e assumiu a missão de fazer um pronunciamento de sete minutos em rede nacional no qual deverá fazer um balanço do governo.

A partida de Bolsonaro para o exterior no penúltimo dia de mandato é o último dos episódios de desrespeito às instituições democráticas que marcaram o governo. Ao longo dos últimos quatro anos, em diversas ocasiões, o presidente xingou e ameaçou ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), prometeu desobedecer determinações judiciais e insuflou manifestações de cunho golpista, além de, reiteradamente, levantar suspeitas infundadas a respeito do sistema eleitoral brasileiro. Ontem, antes de embarcar rumo aos EUA, Jair Bolsonaro fez uma de suas tradicionais "lives". Durante a transmissão, ele se defendeu de críticas e foi às lágrimas ao falar da família. Nesse momento, disse que deu o "melhor" de si e citou o "sacrifício" das pessoas que estavam ao seu lado, como a primeira-dama, Michelle Bolsonaro, e a filha do casal, Laura. Sob pressão, o presidente condenou pela primeira vez os atos terroristas de alguns dos seus apoiadores. Um deles instalou uma bomba em um caminhão para que explodisse nos arredores do aeroporto de Brasília. O dono do veículo desconfiou do pacote e acionou a polícia, que frustrou o atentado. Antes disso, um grupo de manifestantes fez um ataque sem precedentes à sede da Polícia Federal, incendiando veículos, após a prisão de um líder indígena envolvido em protestos antidemocráticos.

— Nada justifica essa tentativa de um ato terrorista, aqui na região do aeroporto de Brasília. Nada justifica. Um elemento, que foi pego, graças a Deus, com ideias que não coadunam com qualquer cidadão — disse Bolsonaro.

Suspeitas infundadas

Após sofrer a sua primeira derrota nas urnas, o presidente permaneceu a maior parte do tempo recluso no Alvorada e evitou declarações públicas. Nesse período, ele chegou a ficar 37 dias em silêncio. De um tempo para cá, porém, vinha sendo pressionado por aliados a fazer um pronunciamento antes de deixar o cargo. Ontem, Bolsonaro afirmou que "foi difícil ficar dois meses calado". Acrescentou que estava ali para fazer uma prestação de contas e comentar o "momento político atual". Na sequência, classificou o futuro governo de "capenga", sem explicar a que se referia. — O que eu vejo desse governo que está previsto para assumir domingo? É um governo que começa capenga. Já com muitas reações. A gente vê gente que votou para o lado de lá e se arrependeu, dado o que está acontecendo —afirmou.

Em seu pronunciamento final, o presidente também defendeu que não era o momento de "jogar a toalha" na oposição política a Lula. Desde o fim do segundo turno das eleições, o presidente do PL, Valdemar Costa Neto, vem dizendo que quer ver o correligionário candidato ao Planalto de novo daqui a quatro anos. O presidente aproveitou a oportunidade para, mais uma vez, questionar o resultado da eleição, sem apresentar indícios de eventuais irregularidades. Ele relembrou que o seu partido, o PL, moveu uma ação no Tribunal Superior Eleitoral (TSE) com o mesmo objetivo. O processo, no entanto, foi arquivado por falta de provas após decisão do ministro Alexandre de Moraes, presidente da Corte, que ainda aplicou à legenda uma multa de R$ 22,9 milhões.