Título: Combateremos ao sol!
Autor: Chico Alencar*
Fonte: Jornal do Brasil, 12/10/2005, Outras Opiniões, p. A11

A análise comparativa do governo Lula não deve ser feita com a mediocridade privatista da década Collor/FHC, mas com o programa mudancista apresentado em 2002, que conquistou a adesão de mais de 52 milhões de brasileiros. O falacioso ''caminho único'' do neoliberalismo prosseguiu. O governo não mudou a política econômica, ao contrário: reforçou sua ortodoxia e estabeleceu o superávit primário que hoje esteriliza R$ 80 bilhões/ano. O pagamento (jamais renegociado) de juros das dívidas financeiras corresponde, no Orçamento da União, em um mês, ao gasto anual com o SUS, e, em 15 dias, ao dispêndio anual com Educação! O Brasil, com a maior taxa de juros do planeta, continua sendo o paraíso dos banqueiros, dos especuladores, das 15 mil famílias rentistas. Para cada real destinado ao Bolsa-Família, R$ 15 vão para o pagamento de serviços da dívida. O governo Lula não logrou, por isso, firmar políticas estruturantes e reformistas na educação, no meio ambiente, na saúde, na habitação, na cultura, no desenvolvimento agrário e mesmo na assistência social, a despeito das valorosas equipes ministeriais que lá estiveram ou estão. Há um dique de contenção instalado na Fazenda, no Planejamento e no Banco Central, que impõe um viés conservador e continuísta ao governo, jogando fora, para nosso desespero, uma oportunidade histórica.

A chamada ''base aliada'' cristalizou-se com partidos e lideranças de tradição fisiológica que operam na pequena política, e cobram cada vez mais por um apoio sempre frágil, vez que nunca cimentado no interesse público ou com amálgama ideológico. .

Os dirigentes dessa política anti-PT e nada progressista, ao proclamar sua votação ''fantástica e surpreendente'' nas eleições internas recém-realizadas, ainda dizem que ''o militante entendeu que a crise não é do PT, mas de todo o sistema político''. Sistema político que o governo não quis modificar, engavetando a reforma por exigência de seus parceiros reacionários, com quem muitos petistas sob investigação, e sequer submetidos à comissão de ética interna, mantêm estreitas relações. Para quem sempre ostentou com orgulho a estrela no peito, quanta frustração!

É hora de aprender com o grande Apolônio de Carvalho: nunca perder a visão estratégica e manter, mesmo em tempos de desencanto, um otimismo visceral. O desafio é reconstruir uma unidade mínima para a esquerda, com o ideário da igualdade social forjando uma ampla frente antineoliberal. Esse esforço de recomposição só prosperará se baseado num projeto para o Brasil, largamente debatido pelas forças da esquerda democrática. Ele deve incorporar propostas de reestruturação radical do Estado, soberania nacional e novo padrão de desenvolvimento econômico e social auto-sustentável, distribuidor de riqueza e renda. Ele partirá do entendimento de que a força social de mudança está na luta popular organizada, na reafirmação de que os meios são os fins, em processo de realização.

Assim, ousamos apostar no recém-criado - com o aval de 430 mil eleitores de todo o Brasil - Partido Socialismo e Liberdade, o PSOL. Ainda pouco conhecido, o PSOL é projeto em construção, propositivo, ideológico, sem grande visibilidade na teledemocracia em que vivemos. Trata-se, portanto, de disposição para moer no áspero, cientes das imensas dificuldades eleitorais, inclusive - o que tira a razão de quem, equivocadamente, possa ver algum ''oportunismo'' nessa escolha.

Entendemos que o PSOL não deve ceder à tentação fácil de crescer por oposição e contraponto ao PT, de onde vieram seus principais quadros e sua entusiasmada militância. O partido, em fase de constituição, deve buscar filiações de quem, com generosidade, acredita sobretudo na elevação do nível de consciência política de nossa gente, hoje tão desiludida. Não pode se contentar com a presença em atos de rua, com justas reivindicações e muitas bandeiras (aquelas que o PT deixou de levar há anos...): o trabalho político de tecer a rede dos lutadores do povo é o mais importante.

São penosas as encruzilhadas da história. O ''breve século XX'' pontua a trajetória da esquerda mundial com ensaios e erros, poucas conquistas e muitas derrotas, que merecem reflexão atenta. E impuseram escolhas, sempre dramáticas, demandando despojamento e renúncias. Não partimos do zero, como um Sísifo que viu a pedra rolar morro abaixo e necessita começar tudo de novo. Não! É também nossa a herança da democracia direta, do orçamento participativo, do ''modo petista'' de legislar e governar, com transparência e controle social. Não deixaremos num imaginário museu das lutas populares as experiências de partido-pedagógico e partido-movimento. É da esquerda brasileira a rica experiência do partido de Paulo Freire e Florestan Fernandes, que se reinventava na pluralidade das expressões constitutivas da identidade de um povo que não aceita a ''ninguendade'' e a pré-cidadania a que as elites aristocráticas e racistas tentam lhe condenar.

Seguimos buscando, humildemente, o caminho da plena libertação. Só a história dirá, mais à frente, quem tem razão.

*Chico Alencar é deputado federal pelo Partido Socialismo e Liberdade (PSOL - RJ).