Valor Econômico, n. 4953, 05/03/2020. Opinião, p. A20
Burocracia irracional legal
Alketa Peci
A burocracia é um dos fundamentos da democracia. Identificada por Max Weber como um marco das sociedades modernas, a burocracia é a materialização do poder racional- legal. O pilar racional indica que a forma de organização de trabalho deve seguir os princípios da razão, adotando políticas, hierarquias, sistema de cargos e remunerações que possibilitam o alcance dos objetivos estratégicos do Estado. O pilar legal da burocracia garante a proteção originada da lei, evitando o sequestro da máquina administrativa pela arbitrariedade ou pelo personalismo. Como um poder que emane da razão e da lei, a burocracia incorpora ideais iluministas e humanistas e supera formas tradicionais de exercício da autoridade.
Ao longo da sua construção histórica, a burocracia brasileira desvirtuou esses pilares. Originada como um experimento de engenharia reversa sob a premissa de que é possível estimular a modernização do país criando formalmente estruturas burocráticas, a burocracia ficou marcada pelo vício do legalismo.
O vício do legalismo corrompe a racionalidade e se manifesta em n sintomas: no número excessivo de cargos e carreiras (mais de 300) que existem apenas no serviço público federal; na desigualdade de distribuição salarial; numa série de distorções orçamentárias e corridas de gastos no final do ano orçamentário; no peso expressivo dos controles na execução de vários programas; na proliferação de siglas como OS, Oscips ou SSA, que buscam responder à mesma necessidade de cooperação com a sociedade civil organizada; na falta de autonomia do gestor público para decidir recursos humanos ou orçamentários; entre tantos outros. Todos esses sintomas burocráticos são legais, mas totalmente irracionais.
O vício do legalismo começa a se manifestar no Poder Legislativo: quando um novo projeto de lei, em vez de se basear em dados e evidências para solucionar um problema de interesse público, é capturado pelo senso comum (na melhor das hipóteses) ou por grupos de interesse e vira uma colcha de retalhos; quando essa nova lei se traduz num número infinito de Portarias e Instruções Normativas que tentam traduzir administrativamente o conteúdo da lei; quando esse arsenal infralegal, cheio de contradições, incoerências, lacunas e sobreposições, é tudo o que o gestor público brasileiro conhece como o melhor da “racionalidade” administrativa; e quando o Poder Judiciário, tribunais de conta ou ministérios públicos questionam o resultado dessas decisões administrativas, incompreensíveis à luz dos princípios constitucionais e da própria racionalidade administrativa, mas acabam impondo maior irracionalidade aos gestores públicos. Todas essas manifestações são legais, mas o caos irracional continua a reinar.
O legalismo do setor público brasileiro é alimentado por e retroalimenta vários tipos de jogos: os bem-intencionados, que heroicamente buscam navegar o Frankenstein legal para entregar bens públicos ao cidadão; os acomodados, que fazem apenas o que a lei permite (e esta dá muito pouca margem de ação); e os (poucos) parasitas que dominam, incentivam e se alimentam desse caos legal.
Alguns desses parasitas são, de fato, encontrados dentro do serviço público, representando algumas forças corporativistas privilegiadas que emplacam aumentos e outros penduricalhos (irracionais, até imorais, no contexto da desigualdade sistêmica brasileira, porém sempre legais). O legalismo alimenta sanguessugas em outros meios, como o empresarial, naqueles (poucos) agentes que se beneficiam de bolsa empresário, traduzida em leis e portarias que criam artificialmente campeões nacionais e barreiras de entrada, abrindo portas para a corrupção institucionalizada.
O excesso de legalismo dificulta a transparência das decisões públicas, inibe o accountability e alimenta relações artificiais com a sociedade civil organizada. Os parasitas se hospedam nas entranhas do legalismo e os sanguessugas se alimentam do corpo debilitado da burocracia irracional-legal.
Todo gestor público brasileiro, em vários níveis da federação, sente esses sintomas na pele. Ele se frustra quando observa crianças com fome na sala de aula, mas não consegue alocar mais recursos para essa finalidade, porque o orçamento está vinculado e rastreado via inúmeras portarias. Ele se frustra quando percebe claros indícios de cartel em compras públicas, porém sente-se limitado a analisar apenas uma excessiva e desnecessária documentação entregue pelos interessados. Em tempos de inteligência artificial e ciência de dados, a elite dos servidores públicos no país passa mais tempo com uma caneta na mão, enquanto um exército de professores, enfermeiros e médicos luta para entregar serviços públicos ao cidadão.
O legalismo tornou-se aquela doença crônica com a qual o setor público brasileiro aprendeu a conviver desde os primeiros anos da vida, sem a qual, não sabe existir. Durante a pesquisa em que busquei compreender a institucionalização de melhorias regulatórias no setor público federal, me deparei com inúmeros servidores perplexos com a possibilidade de não ter uma decisão administrativa traduzida numa portaria ou instrução normativa, sob o risco de serem considerados “pouco produtivos”.
A população se importa com serviços públicos entregues, e não com números de regulamentações. A burocracia precisa ser resgatada na sua dimensão racional, cortando o excesso de legalismo. O primeiro passo é a construção de uma força-tarefa que busque a simplificação e racionalização do estoque legal, começando por áreas prioritárias. A mudança de cultura será mais lenta e de longo prazo.
A reforma administrativa em discussão foca nos sintomas, mas não enfrenta o legalismo paralisante do setor público brasileiro. A burocracia será sempre disfuncional. Mas, sem uma burocracia forte e eficiente, o Estado, a sociedade e a democracia brasileiros serão piores do que hoje, por mais inimaginável que esse cenário possa parecer.
Alketa Peci é professora da FGV Ebape. Este artigo expressa a opinião do autor, não representando necessariamente a opinião institucional da FGV.