Valor Econômico, n. 4954, 06/03/2020. Finanças, p. C3

MP do Bolsa Família traz de volta ameaça de tributação de fundos voltados para fortunas

Adriana Cotias


Como contrapartida ao projeto que converte em lei a medida provisória para tornar o 13º salário permanente a beneficiários do Bolsa Família e de pensões continuadas (BPC), a Comissão

Mista do Congresso trouxe à tona um tema que estava adormecido: a tributação dos fundos voltados para grandes fortunas. O texto que está no parecer do relator, o senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP), é bastante similar ao da MP 806, que caducou em abril de 2018, ainda no governo do presidente Michel Temer.

Os fundos de investimentos em participação (FIP) familiares, aqueles classificados como “não entidades de investimentos”, passariam a ser tratados como pessoas jurídicas, com um primeiro fato gerador “fictício” de 15% sobre ganhos de capital em 2 de janeiro de 2021 e depois seguiriam a regra tributária das empresas, com alíquota de 34%. Ou seja, haveria cobrança retroativa. Está prevista ainda a extensão do come-cotas, o imposto semestral que hoje incide nos fundos de renda fixa e multimercados convencionais, para os fundos fechados restritos, usados pelas famílias mais endinheiradas para se valer do benefício do diferimento fiscal - adiando o pagamento do imposto até o resgate ou amortizações anuais.

Os FIP considerados “entidades de investimentos”, que são os “private equity” autênticos e compram fatias de empresas, também seriam afetados. Teriam que distribuir dividendos e tributar em 15% o ganho de capital em relação ao custo de aquisição toda vez que alguma participação, mesmo que o mandato seja manter o dinheiro do cotista investido. Na regra de exceção à tributação dos fundos fechados estão fundos de recebíveis (FIDC), os FIP de infraestrutura, os imobiliários e os fundos constituídos por investidores residentes ou domiciliados no exterior.

A introdução dos fundos fechados na MP [do Bolsa Família] foi uma surpresa”, afirma Elisa da Costa Henriques, sócia da consultoria tributária do Velloza. Embora não fosse um assunto esquecido, sob constante risco de voltar aos debates no Congresso, ela diz que pelo caráter de urgência do projeto do Bolsa Família - que tem prazo para votação até o dia 24- perde-se todas as discussões e aproximação de entidades do mercado com os parlamentares que haviam sido feitas durante o processo da MP 806.

Segundo a especialista, com essa ameaça no radar, os investidores que ainda não tinham revisado suas estruturas patrimoniais tendem a se mobilizar agora. O que vinha sendo feito quando o primeiro projeto foi discutido lá atrás era, por exemplo, a cisão de um multimercado em fundos distintos, de ações e de recebíveis, como um FIDC, que escapam da mordida do come-cotas. Alteração das políticas de investimentos ou incorporações também estiveram entre as alternativas usadas. “Foram feitas reorganizações dentro dos limites legais da CVM e da Receita Federal para que as famílias não se sujeitassem às novas regras. ”

Para Elisa, a cobrança do imposto retroativo deve judicializar o tema. “Tem muita discussão judicial se poderia tributar o rendimento acumulado quando se tinha uma sistemática que não previa novo evento de tributação do fato gerador. ” Enquanto não houver decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), se é constitucional ou não, a União não contaria com essa receita, diz.

E como se vai tributar o passado numa tacada só, não haveria uma receita recorrente para fazer jus às despesas permanentes para o 13º salário do Bolsa Família ou do BPC, acrescenta Fernanda Calazans, também sócia do Velloza. “O efeito acumulado relevante seria só no primeiro ano. ” No projeto atual está a mesma estimativa de arrecadação do antigo, de R$ 10,72 bilhões.

Para Alamy Candido, sócio do Candido Martins Advogados, a tributação retroativa é ponto polêmico e há argumentos para os dois lados que vão esquentar os debates no Judiciário. Por um lado, o governo, que concedeu a regra do diferimento, poderia suspendê-lo e criar um fato gerador fictício. O contra-argumento é que o contribuinte não poderia oferecer à tributação os ganhos do passado em razão da segurança jurídica.

A percepção de Elisa, do Velloza, é que os FIP patrimoniais podem se tornar inviáveis, até porque os administradores de fundos (serviço em grande parte prestado pelos grandes bancos), têm entre as suas atribuições o recolhimento do imposto. Não há clareza, diz, se na distribuição de dividendos aos cotistas valeria a regra de isenção que existe hoje, ou se cobraria os 15% sobre o rendimento a que os FIP estão sujeitos na fonte. “Hoje a remuneração que o administrador tem para prestar esse serviço não cobre o risco e custos envolvidos nas obrigações acessórias. ”

Candido acha que os fundos fechados continuarão sendo bons veículos para planejamento sucessório e organização da governança familiar. O que muda, na sua visão, é que talvez estruturas abaixo de R$ 10 milhões não compensem por conta dos custos.