Valor Econômico, n. 4955, 07/03/2020. Opinião, p. A12

Agenda Brasil-EUA



Em depoimento à Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional do Senado, na quinta-feira passada, o chanceler Ernesto Araújo disse que uma das características da atual política externa é “olhar para frente” e não mais “para o lado”. Nos governos anteriores, segundo o chefe do Itamaraty, o Brasil ficava sempre à espera da liderança dos outros e caminhava apenas em grupo, independentemente de suas convicções. “Hoje nós olhamos para frente com nossas ideias”, afirmou Araújo, emendando em seguida: “E para cima”.

O ministro esclareceu que se referia a Deus, à dimensão espiritual, mas não escapou da ironia dos senadores. Para cima, questionou imediatamente um deles na audiência pública, não quer dizer os Estados Unidos? Não há, afinal, um alinhamento automático entre o Palácio do Planalto e a Casa Branca? De certa forma, o governo Jair Bolsonaro já precisa arcar com a pecha de submisso ao presidente Donald Trump. No entanto, convém analisar com frieza a dinâmica recente das relações Brasília-Washington.

Nos últimos 15 meses, o Brasil obteve avanços e vitórias. A reabertura do mercado americano para a nossa carne bovina in natura e o acordo de cooperação militar conhecido pela sigla RDT&E, que permitirá às empresas brasileiras de defesa ter acesso a um fundo homônimo de quase US$ 100 bilhões anuais para o desenvolvimento conjunto de equipamentos de alta tecnologia na indústria bélica, são notícias animadoras.

Há que se destacar ainda as vantagens para o Brasil do acordo de salvaguardas tecnológicas, firmado com os Estados Unidos em março do ano passado e recém-promulgado, depois de tramitação no Congresso

Nacional. Graças a ele, a base aeroespacial de Alcântara (MA) poderá ser usada para lançamentos comerciais, com a promessa de ganhos bilionários. Apesar de ter sido inicialmente preterido pela Argentina na corrida por uma vaga na Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE), o Brasil também conseguiu apoio prioritário da gestão Trump à sua entrada na entidade, que é uma obsessão do atual governo.

Obviamente, essas conquistas não vieram de graça. O país se absteve do tratamento especial e diferenciado em negociações futuras no âmbito da Organização Mundial do Comércio (OMC). Aumentou as cotas para importações de trigo e de etanol com tarifa zero, o que beneficia primordialmente os produtores dos Estados Unidos. Cidadãos americanos ficaram isentos unilateralmente da necessidade de visto de turista, rompendo a política brasileira de reciprocidade na área.

Concessões de lado a lado são parte do jogo e, como já se disse, alguém tem que estender a mão primeiro. O Brasil entregou mais no início, os Estados Unidos demoraram um pouco mais para ceder, mas pode-se afirmar que tem sido um jogo de ganha-ganha no campo econômico e comercial. A perspectiva de venda de 75 aeronaves A-29 Super Tucano para o Comando de Operações Especiais e a adesão brasileira à Iniciativa América Cresce, voltada ao fortalecimento da infraestrutura nos países latino-americanos, reforça essa percepção.

É exagero afirmar que as relações bilaterais foram negligenciadas em períodos anteriores, mas certamente ficaram abaixo do potencial - mesmo com a excelente química pessoal de Fernando Henrique Cardoso e Bill Clinton, de Luiz Inácio Lula da Silva e George W. Bush.

Acenos mútuos, proximidade política e coordenação de posições comuns em fóruns internacionais são bem-vindos. O apoio do Brasil à retórica “antiglobalista” da administração Trump ou o engajamento do Itamaraty na iniciativa em defesa da liberdade religiosa não deveria surpreender num governo com a legitimidade das urnas para adotar esse tipo de postura.

Que não se confunda, entretanto, essa promissora parceria econômico-comercial com atitudes desnecessárias: declarações de endosso à reeleição do atual ocupante da Casa Branca, uso de boné em apoio à campanha “Trump 2020”, frases que minimizam as necessidades de brasileiros indocumentados em território americano. Muito menos com ações que fogem da nossa tradição diplomática e não representam a boa defesa dos nossos interesses: a transferência da embaixada em Israel para Jerusalém, possíveis incursões militares na vizinhança, negação das mudanças climáticas e ausência de protagonismo na área ambiental. O Brasil também deve se blindar contra pressões no 5G. Bolsonaro melhorou as relações do país com os Estados Unidos, e isso pode trazer inúmeros benefícios. Não é preciso perder tempo, energia e estoque de simpatia no mundo em iniciativas que só geram críticas sobre um indesejável alinhamento automático.