Valor Econômico, n. 4955, 07/03/2020. Opinião, p. A13

A potência da política monetária

Ricardo Barboza
Bráulio Borges


“O Comitê julga que as transformações do mercado de crédito e capitais tendem a aumentar a potência da política monetária”. Essa afirmação foi feita pelo Banco Central nas últimas duas atas do Copom.

Se a política monetária está ficando mais potente, alterações na taxa Selic têm maior efeito na atividade e na inflação. Se esse movimento não for bem mapeado, o Banco Central pode acabar superaquecendo a economia e aumentando desnecessariamente a inflação. Diante disso, seria preciso agir com cautela.

À primeira vista, o leitor pode imaginar que há razões para a política monetária estar se tornando mais potente no Brasil. Afinal, passamos recentemente por uma série de reformas que tiveram o objetivo (dentre outras coisas) de aumentar a efetividade dos canais de transmissão da política monetária.

Um exemplo é a criação da TLP em 2018, que tem feito parte do crédito direcionado migrar de uma taxa de juros institucionalmente determinada (TJLP) para taxas de juros de mercado - mais sensíveis, em tese, às decisões de política monetária.

Outro exemplo é a mudança promovida no Cadastro Positivo em 2019. Essa medida permite um maior conhecimento sobre os tomadores de empréstimo no país e reduz o racionamento de crédito. A implicação é que para uma dada taxa Selic, maior se torna a força da política monetária na atividade.

Além disso, a mudança de patamar da Selic estimula o desenvolvimento do mercado de crédito, pois reduz problemas de seleção adversa e reduz o problema de risco moral. O juro mais baixo também estimula os mercados de capitais por meio do canal da assunção de riscos, em um contexto no qual os retornos reais de vários ativos menos arriscados estão relativamente baixos (abaixo inclusive de metas atuariais de vários fundos de pensão domésticos).

Em relação aos fatos, é inegável que os mercados de crédito e de capitais estejam com crescimento vigoroso. O credito livre para pessoas físicas está acelerando nas últimas leituras, com crescimento real de 11% nos últimos 12 meses. A emissão de debêntures, por sua vez, é recorde.

Mas nada disso garante que a potência da política monetária esteja, fato, aumentando. Assim sendo, cabe perguntar: a política monetária tem (ou não) ficado mais potente no Brasil?

É possível quantificar a potência da política monetária. Nos modelos de pequeno porte do BC, ela pode ser definida “pelo produto da soma dos coeficientes da taxa de juros real na Curva IS pela soma dos coeficientes do hiato do produto na Curva de Phillips”, nas palavras do BC em um boxe do RTI de 2010.

Estimamos esses modelos em janelas móveis para capturar as mudanças nos parâmetros ao longo do tempo. Nossos resultados não corroboram a hipótese de que a política monetária está se tornando mais potente no Brasil. Não há evidência de que o hiato do produto esteja mais responsivo à taxa de juros, nem que a sensibilidade da inflação ao hiato tenha mudado nos últimos anos.

Diante disso, endossamos as palavras de Nilson Teixeira em sua coluna aqui no Valor: “O ideal seria que a discussão sobre a potência da política monetária fosse aprofundada, com a elaboração de estudos empíricos sólidos sobre o seu suposto aumento. Do contrário, há o risco de surgirem conjecturas (...) de que as decisões sobre a Selic estão sendo influenciadas (...) por teses com baixa sustentação empírica”.

Isto posto, gostaríamos de levantar algumas reflexões sobre o assunto em questão. Primeiro, que se a política monetária estivesse cada vez mais potente, deveríamos estar revisando as projeções de Selic para cima (pois seríamos surpreendidos por seus efeitos maiores que o previsto na atividade e na inflação). Mas nos últimos 3 anos, temos visto o contrário: previsões de Selic sendo revistas para baixo!

Segundo, que o Brasil saiu de uma taxa Selic de 14,25% para uma Selic de 4,25%, totalizando, portanto, uma queda de 10 p.p. nos últimos 3 anos. O fato de estarmos hoje com um hiato do produto ainda tão negativo (-4,3% segundo uma média de 5 estimativas) e com núcleos de inflação bem abaixo da meta (há 3 anos) não sugere que nossa política monetária esteja muito mais potente.

Terceiro, que há indícios de que a política monetária pode estar menos (e não mais) potente do que no passado. Isto porque estamos em um momento de alta e persistente incerteza política/econômica. Há evidências que, nesses contextos, a política monetária perde potência, sendo necessários maiores (e não menores) estímulos monetários para afetar a atividade e a inflação. Além disso, o spread bancário no Brasil não caiu conforme o esperado - até subiu durante boa parte de 2019. Esse movimento do spread retira força dos impulsos monetários para estimular a atividade e a inflação.

Por fim, mesmo que a potência da política monetária estivesse aumentando, há poucos indícios de que isso venha a gerar um superaquecimento da economia no horizonte relevante. A economia brasileira está em situação delicada, com elevada ociosidade dos fatores de produção, como reconhece o BC nas suas atas desde 2016, e sob políticas fiscais e parafiscais contracionistas. Além disso, estamos em um mundo marcado pelo novo coronavírus, que está gerando uma desaceleração expressiva do crescimento mundial (sobretudo da China) e contraindo os preços internacionais das commodities, além de já ter gerado um choque financeiro global igual ao do estouro da bolha das “pontocom”. O Banco Central americano, por exemplo, já reagiu a essa nova realidade.

Seja como for, o fato concreto é que estamos diante de um novo choque contracionista, depois de alguns anos de inflação subjacente rodando abaixo da meta, com perspectivas de isso voltar a se repetir em 2020 e 2021. E a cada hora surge um novo argumento para não prolongar o ciclo de afrouxamento monetário - nosso principal instrumento anticíclico. Uma pena que o preço a ser pago por conta dessas conjecturas seja um desemprego tão elevado por tanto tempo. Só esperamos que depois não venham dizer que a “longa duração da recessão pode produzir restrições de oferta” na economia brasileira.

Ricardo de Menezes Barboza é professor colaborador da Coppead/UFRJ e mestre em Macroeconomia pela PUC-Rio.

Bráulio Borges é pesquisador associado do Ibre/FGV, economista sênior da LCA e mestre em Teoria Econômica pela USP.