Valor Econômico, n. 4955, 07/03/2020. Finanças, p. C3

BC não precisaria ter sido tão contundente, diz Senna
Entrevista:  José Júlio Senna, Ex-diretor do Banco Central, chefe do Centro de Estudos Monetários do Ibre/ FGV.


O Banco Central (BC) agiu corretamente ao expressar ao mercado, na terça-feira passada, que o cenário mudou desde a última reunião do Copom - quando havia indicado que o ciclo de alívio monetário tinha chegado ao fim. Mas acabou fazendo um comunicado enfático demais e, com isso, assumiu um compromisso de voltar a reduzir a Selic. “Não precisaria ter sido tão contundente porque, no meio do caminho, podem acontecer coisas”, diz José Júlio Senna, chefe do Centro de Estudos Monetários do Ibre/ FGV.

Para o ex-diretor do BC, o melhor a fazer, no momento, seria manter o juro estável. “Essa piora da curva de juros não teria se materializado dessa maneira” caso tivesse optado por um tom mais cauteloso, observa. Na B3, a taxa de juro futuro com vencimento em 2025 subiu de 5,79% para 6,02% na quinta-feira, dia de maior nervosismo no mercado de juros após a divulgação do comunicado do BC. (LP e LH)

Valor: Os mercados não se acalmaram após a decisão extraordinária do Fed de cortar os juros em 0,5 ponto percentual. Por quê?

José Julio Senna: Antes da decisão, o Fed divulgou um comunicado assinado pelo seu presidente, Jerome Powell, dizendo que iria agir apropriadamente para dar suporte à economia. Um comunicado desse tipo entre reuniões é inusitado, talvez seja inédito. E não é, a meu ver, algo que o Powell tenha feito sozinho. Não cabe ao presidente definir sozinho, é um sinal muito forte. Tanto que o mercado reagiu muito. Para escrever um comunicado como esse, ele deve ter consultado o comitê - por e-mail, WhatsApp, telefone, pessoalmente. Não é importante. O importante é que outros opinaram, então houve uma reunião extraordinária. Então, não precisava de outra. O mercado entendeu que o comunicado foi um sinal forte e, então, o próximo passo viria só no dia 18 [data da reunião do Fomc]. Então, quando houve o corte de juros, foi como uma segunda reunião. Mas, desta vez, ele não conseguiu explicar direito a mudança tão repentina de postura. Ele se enrolou. Acho esse conjunto de coisas contribuiu para azedar o ambiente e a reação ter sido negativa.

Valor: Mas reduzir juros faz sentido nos EUA neste momento?

Senna: Acho que a epidemia está produzindo efeito tanto sobre oferta e quanto demanda. Muita gente contraindo gastos de viagem, entretenimento... Então, tem um efeito sobre a demanda também. Mas também não está claro se reduzir os juros vai fazer as pessoas consumirem mais agora. É complicado. De todo modo, uma reação de banco central num momento de incerteza e insegurança tem o seu valor. No sentido de sinalizar que o governo está reagindo, está fazendo alguma coisa. Tem seu benefício de segurar o movimento de pânico. Eu concluo que acho legítimo o Fed fazer uma redução de juros.

Valor: No Brasil, o BC também se pronunciou, o que gerou uma reação conturbada nos mercados...

Senna: O Banco Central até o começo de fevereiro tinha passado para todo mundo a ideia de que iria interromper o ciclo de queda de juros. Com o desenvolvimento dessa epidemia, houve uma mudança de ambiente com a perda alucinante dos mercados acionários - nos EUA, as bolsas tinham caído de 10% a 12%. Então, ficou na cara que o sinal de interrupção da queda dos juros tinha ficado ultrapassado. É obrigação de um Banco Central que atua de forma transparente sinalizar eventuais mudanças de rumo. Então, o comunicado precisava ser feito. Mas a questão é o tom do comunicado. Na minha opinião, foi forte demais. Representou um compromisso, não precisaria ter sido tão contundente porque, no meio do caminho, podem acontecer coisas. O BC saiu de um compromisso de interrupção do corte de juros para um compromisso de que vai reduzir. Seria viável escolher palavras que sinalizassem: ‘a interrupção não é mais o que está na cabeça do BC, vamos ficar duas semanas pensando nessa história e no dia 18 [próxima reunião do Copom] tomaremos a decisão’.

Valor: Mas um corte de juros aqui é adequado?

Senna: Aqui, isso é menos nítido. Os juros já foram reduzidos de maneira muito expressiva, houve um corte de 10 pontos percentuais desde o fim de 2016. E a depreciação do real não fez nem cócega na inflação, nem mesmo sobre as expectativas de inflação, que estão super bem ancoradas. Isso tem a ver com a atuação dos diretores do BC desde 2016 e com o fato de haver algum suporte de política de governo, a começar pelo teto de gastos. As expectativas bem ancoradas inibem os efeitos da depreciação cambial sobre as expectativas e a inflação. Fora a capacidade ociosa que ainda é muito grande. Isso permite ter um certo conforto. Mas qual fenômeno na vida da gente não tem limite? Será assim pra sempre? Tem uma hora em que esses fatores perdem a capacidade de segurar a expectativa de inflação. Alguma preocupação com o nível de câmbio faz sentido. Tanto que o Banco Central tem atuado, cada hora de um jeito. Realmente, segurar um pouco o movimento baixista da taxa Selic faz sentido. Isso é muito diferente de dizer que o BC mira o câmbio, que tem uma meta para o câmbio. Teria sido mais correto fazer um comunicado dizendo que a história do passado não valia mais e esperar a reunião do dia 18. E, dependendo das circunstâncias, fazer um corte de 0,25 ponto - jamais de 0,50 ponto. Mas minha preferência ainda seria por não fazer nada. Agora, ficou complicado voltar atrás. O mais provável é que reduza 0,25 ponto.

Valor: Esse corte não pode acabar piorando as condições financeiras? Os juros de longo prazo subiram muito com essa expectativa.

Senna: O aumento da inclinação da curva de juros é uma demonstração clara de que o caminho que seria preferível seria não fazer nada. Essa piora da curva de juros não teria se materializado dessa maneira. Em compensação, a inflação ficaria abaixo da meta. E aí, paciência. Isso não seria um grande problema.