Título: Proibição de venda de armas
Autor: Alexandre Camanho de Assis
Fonte: Jornal do Brasil, 15/10/2005, Brasília, p. D2
O referendo em vias de ocorrer é um bom momento para refletir e agir em prol de um país melhor. Desde o retorno da Democracia, a decantada participação cidadã tem-se limitado a, quase exclusivamente, votar em eleições para cargos legislativos e executivos e se arrepender; agora, convoca-se o cidadão para deliberar sobre um assunto, não sobre uma cadeira vaga. De imediato, portanto, o grau de comparecimento às urnas já será um justo indicador do quão mais presente na vida pública quer ser o brasileiro; um expressivo indício da vontade de mudar terá se revelado.
O clamor por mudanças é mais forte em algumas áreas. Do ponto de vista de segurança pública, a situação nacional é caótica; se há um grande culpado, é o Estado - ou os sucessivos governos -, cuja crônica ausência justamente onde deveria se fazer mais presente é um relevante estímulo à violência e à marginalidade. Legiões de párias, órfãos do Poder Público, sofrem a cada dia o calvário de viver num país injusto, onde o Estado não chega exatamente para quem mais precisa: educação, saúde, previdência, saneamento - tudo isto é remoto ou imaginário para muitos brasileiros.
Perdida a fé no Estado, o cidadão se armou, mas isto não diminuiu os índices de violência contra a vida e o patrimônio. É preciso que advenha uma nova cidadania, para que surja, por sua pressão, um novo Estado; insistir nas antigas estruturas, que sustentam este modelo em colapso, não é próprio de quem está farto da incompetência estatal. Hoje, vendem-se armas licitamente; com esta liberdade, a que ponto o país chegou?
A recente campanha pelo desarmamento - em que os cidadãos entregaram espontaneamente suas armas - propiciou uma significativa diminuição de mortes violentas. Entregaram-se armas que poderiam ter sido utilizadas em crimes: afinal, o tal ''arsenal dos bandidos'' é composto não exclusivamente de armas vindas do exterior, mas também daquelas adquiridas licitamente, ou tomadas de pessoas que as compraram de forma legal.
Reclamar que a proibição não desarmará o bandido é um truísmo: quem deve fazê-lo é o Estado, e não um referendo. A contribuição que o cidadão pode dar, neste caso, é o de, numa próxima eleição, votar em alguém sustentado por partidos que efetivamente tenham excelentes quadros (e não que apenas simule os ter), e que se comprometa efetivamente com a transformação dos indicadores sociais, mediante e elaboração e execução de políticas públicas fortemente voltadas para os setores carentes (e não os engane, nem os traia, nem os abandone).
Quando alguém evoca a liberdade e seu direito de autodefesa para adquirir uma arma, abstrai que existem limites nestas fruições. Uma característica da civilização ocidental é ter delegado ao Estado funções que o indivíduo, isoladamente, não consegue assumir ou sustentar, como a Justiça e a Segurança Pública.
Acaso é ilimitada a liberdade? Pode alguém evocar em seu favor a hoje inimaginável franquia de fazer o que quer? Evidentemente não, assim como a idéia de um impreciso ''direito de autodefesa'', cuja invocação, acaso hábil e eficaz, pode levar a que, mais adiante, se reclame o direito de fazer justiça pelas próprias mãos, o direito de seguir apenas suas próprias leis, o direito de escolher se paga ou não tributo - eis o mais tentador deles -, o direito de não se submeter ao Direito...
Não há hoje cidadão decente que não lamente a situação deplorável - política, moral, social, cidadã - a que chegou o País. Não há quem, de boa fé, não queira ver o Brasil melhorar. Entretanto, se as estruturas que nutrem e perpetuam o quadro atual não forem rescindidas, continuaremos a lamentar ainda por um longo tempo. Votar pela proibição é tomar o porvir em nossas mãos, para fazê-lo melhor, pelo banimento de uma das duas fontes prioritárias da violência - as armas, base instrumental que a sustentou até então. A outra - ideológica - somente será derrubada pela cidadania quando, pelo voto, este país eleger governantes sérios, realmente dispostos a combater a exclusão, a miséria e a intolerância, e transformar os deserdados sociais em cidadãos, ao invés de bovinamente condescender com a rapina dos cofres públicos.