Valor Econômico, n. 4955, 10/03/2020. Brasil, p. A4

Choque externo intensifica discussão sobre estímulo fiscal

Anaïs Fernandes 


Com o impacto maior dos choques externos sobre uma economia que já cresce lentamente, esquenta o debate sobre a necessidade de estimular a atividade com medidas fiscais e o uso dos bancos públicos. Num cenário de disseminação da epidemia de coronavírus e de queda forte do petróleo, especialistas divergem sobre as medidas de curto prazo, como uma atuação mais forte do BNDES, mas há maior convergência na avaliação de que um impulso aos investimentos, públicos ou privados (via concessões), levará mais tempo, ainda que possa ser visto como desejável.

Um dos possíveis efeitos dos choques sobre o Brasil é a restrição de acesso a recursos, sobretudo pelas empresas, com paralisia do mercado de capitais ou bancos mais restritivos na oferta de crédito, diz Manoel Pires, ex-secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda e coordenador do Observatório de Política Fiscal do Instituto Brasileiro de Economia (Ibre/FGV).

“Se isso se confirmar, será importante o BNDES participar, oferecendo linhas emergenciais”, afirma, acrescentando que medidas de suporte à liquidez podem se estender a outros bancos públicos, como Banco do Brasil e Caixa. Presidentes do BB e da Caixa já sinalizaram que poderão oferecer linhas para ajudar companhias a atravessarem o período de turbulências.

Em outra frente, diz Pires, cabe ao Banco Central conter a “crise expectacional”. “Estamos digerindo ainda um choque muito grande, ninguém sabe bem qual o tamanho e até que ponto tem exagero do mercado. É importante o BC mostrar que está atento para enfrentar os desdobramentos, no horizonte de juros e cambial. ”

Renato Fragelli, professor da EPGE-FGV, diz ver espaço para manejo de política monetária, com novo corte na Selic, mas é contra o aumento de gastos por parte do governo, já que ainda há déficit primário. Além disso, afirma, foi a própria perspectiva no mercado de que um ajuste fiscal seria possível que ajudou a levar a Selic às mínimas históricas.

“Embora os juros estejam menores, precisamos de alguns superávits primários para manter a dívida constante. Esse superávit necessário chegou a ser de 3,5% do PIB [Produto Interno Bruto], hoje está em torno de 1%, mas, como o PIB também não acelera, não vejo espaço para política fiscal contracíclica”, afirma.

Para lidar com a baixa demanda no curto prazo, Fragelli diz ver sentido em medidas como a ampliação dos saques do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS). Ontem, “O Globo” apontou que o governo estuda permitir a antecipação dos saques-aniversário, para operações de crédito. “Essa liberação tem impacto rápido na economia e não compromete a dívida pública”, afirma.

No médio prazo, o governo deve acelerar as licitações, para estimular o investimento privado, diz Fragelli. “Isso é fácil de falar, mas não de fazer. Jogar para o setor privado é bonito no discurso, mas tem que ser feito com muito cuidado”, afirma. Apesar de reconhecer os desafios, Fragelli diz que “gostaria de ver a pauta andando mais rápido”.

Para ele, além de não haver espaço nas contas públicas, o Brasil não sabe fazer política fiscal contracíclica eficiente, porque surgem dificuldades sobre quando começar e terminar e quais instrumentos usar. “Tem que ser via investimento, não pode ser com despesa corrente, aumento de salário. Investimento exige portfólio estudado, orçado, para ser colocado [ao setor privado] rapidamente, e o Brasil não tem isso. ”

Pires, do Ibre/FGV, tem uma visão diferente sobre o uso de recursos do FGTS. “O estímulo via FGTS é extremamente pouco duradouro, dá um trimestre e aquilo se esvai. ”

Na sua avaliação, o juro baixo tem aliviado a trajetória da dívida e devolveu ao governo algum controle sobre o resultado primário. “Para frente, conseguimos ver a estabilização da dívida mesmo com algum déficit. Há espaço para investimentos”, afirma. Mesmo via recursos públicos, porém, Pires diz que o mecanismo exige prazos maiores. “Essa discussão é mais estrutural do que reação à crise. Fazer investimento não é fácil, tem que fazer projeto, colocar no Orçamento, muito provavelmente teria que discutir antes a emenda do teto [de gastos]. Fica difícil usar esse vetor para expandir demanda em espaço muito curto. ”

Já a economista Mônica de Bolle, diretora do programa de estudos latino-americanos da Johns Hopkins University, é categórica ao defender a eliminação do teto de gastos, que limita a expansão das despesas não financeira da União à inflação do ano anterior. O momento, segundo ela, é de investimento público. “Se o governo é tão confiável e prudente na área fiscal, por que tanta paúra de derrubar o teto de gastos para fazer medidas contracíclicas em tempos de crise? Quando muda o cenário, mudam as medidas. O cenário mudou. Não é hora de PEC Emergencial”, escreveu no Twitter, em referência à proposta do governo para criar gatilhos para o ajuste fiscal que ajudem a preservar o teto.

Para o consultor legislativo Pedro Fernando Nery, discussões sobre o teto parecem “meio fora de lugar”. O importante, afirma, é a qualidade do gasto, “e nisso a PEC Emergencial ajuda”. “Os gatilhos são nas despesas correntes, principalmente funcionalismo. Então, em tese, abre espaço para investimento”, diz. Revogar o teto via emenda constitucional é um processo demorado e que pode gerar crise de confiança, afirma. “Já a possibilidade de descumprir o teto poderia ser encarada pela oposição como crime de responsabilidade. ”

Para o economista Guilherme Tinoco, especialista em contas públicas, a agenda de reformas do governo deve ser a prioridade, com destaque para a administrativa e a tributária. Mas, quanto mais elas demoram para serem implementadas, “mais vai abrir espaço para esse tipo de discussão, principalmente considerando o fraco desempenho da economia”, segundo ele.