Título: A esquerda e o referendo
Autor:
Fonte: Jornal do Brasil, 15/10/2005, Outras Opinões, p. A15
O debate sobre a limitação da venda de armas parece embaralhar-se. Por um lado, há alinhamentos claros, que não nos deixam levar ao engano: o MST está a favor e a UDR está contra. Quem é vítima da violência dos donos da terra, com seus jagunços, afirma que, mesmo que seja proibida, continuará a armazenar armas, para seguir tentando impor o reino do terror no campo. Dirigentes da UDR declaram isso à imprensa, com seus nomes e sobrenomes, impunemente. Enquanto os trabalhadores sem-terra se empenham na campanha de desarmamento, de proibição da venda de armas.
Várias lições devem ser tiradas desses dois alinhamentos. Em primeiro, confirma quem é o agente e quem é a vítima da violência no campo brasileiro. Quem se interessa em seguir armando-se representa o poder secular dos proprietários de terra improdutivas, que armam seus capangas para impedir que milhões de trabalhadores, pacificamente, ocupem as terras ociosas e trabalhem para manter-se no campo, além de abastecer o campo e a cidade com sua produção. Os latifundiários, por sua vez, pretendem perpetuar seu poder, fundado em leis injustas, em Judiciário conivente, em polícias a seu serviço e em bandas paralelas de jagunços. Antes de tudo, pelos milhões de trabalhadores do campo, temos que votar sim.
Mas esse alinhamento demonstra também que uma conquista fundamental para o Brasil - a reforma agrária - requer o desarmamento e não o armamento dos conflitos. Que a militarização só generalizará o massacre das populações do campo, desvalidas diante do poder do dinheiro e das armas dos latifundiários. Ensina também que a força da esquerda reside na justeza de suas reivindicações - terra para quem quer trabalhar -, na ideologia que a mobiliza - justiça social, solidariedade, democracia participativa.
A luz dos enfrentamentos sociais mais violentos da história brasileira é um farol suficientemente definidor para julgar se a proliferação de armamentos nas mãos privadas é boa ou é ruim. Estar do lado do MST, da sua necessidade de resolução pacífica dos conflitos ou do lado da UDR e das suas formas violentas de defesa dos seus interesses.
Enquanto isso, em um mundo oposto, pessoas alegam o direito individual de cada um decidir sobre ter ou não ter armas. Confundem o direito privado da opção por uma religião ou por não ter nenhuma, por um time de futebol, por uma identidade sexual, com o direito de ter armas. Aqueles são perfeitamente legítimos, enquanto não prejudiquem os direitos de outras pessoas. Enquanto que o direito à arma, não é o do colecionador, mas o de quem se dispõe a usá-la ou corre o risco de que outro a tome dele para usá-la ou que acidentalmente provoque danos em terceiros. Trata-se de um direito que afeta o direito à vida dos outros, e que deve estar regulada pelas normas de convívio pacífico entre as pessoas e conforme o Estado de direito.
Mas se voltarmos aos alinhamentos, veremos que Jair Bolsonaro é um dos mais ativos militantes da venda livre de armamentos, assim como a revista Veja. Esta, seguindo as orientações bushistas que defende no Brasil, alinhou apenas argumentos contra a limitação da venda de armamentos. Questionada pelo ombudsman da Folha de São Paulo sobre a unilateralidade da revista, seu editor, de forma totalitária, como tem agido a publicação, respondeu que não havia dois lados, apenas um. Isto é, suprime o adversário - como faz editorialmente, eliminando os argumentos que se opõem à sua cada vez mais frágil argumentação: não há argumentos contra seus argumentos. Quer usar a revista como arma de extermínio do outro e, coerentemente, prega o voto contra a limitação da venda de armamentos.
A esquerda é republicana, é pela resolução pacífica e justa dos conflitos, é pela extensão do Estado de direito, pela reconstrução das polícias a serviço do cumprimento das leis e dos direitos da cidadania, é contra a indústria armamentista, contra as guerras e a violência. (O PSTU alega que isso vedaria a que um povo, como o venezuelano, pudesse pegar em armas. O comércio livre de armas na Venezuela favorece aos golpistas de direita. O PT se pronunciou pelo sim. Outras forças de esquerda estão caladas - confusas ou coniventes.) A esquerda vota sim ao controle da venda de armamentos.