Valor Econômico, n. 4957, 11/03/2020. Opinião p. A12

Quem ensina os que ensinam?

Heloisa Morel


A qualidade questionável de grande parte dos cursos de ensino superior no Brasil não é novidade. São poucas as universidades que figuram entre as melhores do mundo. Mesmo quando essas instituições entram em listas como a Times Higher Education, um dos principais rankings universitários do planeta, não se classificam nem entre as 100 primeiras. Isso influencia diretamente na formação de profissionais no país.

As críticas são em diferentes áreas. No Direito, a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) rotineiramente questiona a expansão desenfreada de cursos - e divulga números de reprovação quase sempre acima de 80% em sua prova que permite o exercício da advocacia. Em Administração, diz-se que as escolas brasileiras nasceram como as dos Estados Unidos, mas pararam no tempo. E em Educação a percepção é que a formação é muito teórica, filosófica e pouco prática, totalmente descolada da realidade da escola. O mais recente Enade (Exame Nacional de Desempenho de Estudantes) indicou que 73% dos mais de 1.200 cursos de Pedagogia no país tiveram nota menor que 4, o que indica qualidade abaixo da média ideal.

Evidentemente, a mudança de cenário em nossos cursos superiores depende de uma série de ajustes e estímulos para que a qualidade realmente seja um objetivo prioritário. Mas é nos cursos de pedagogia e licenciaturas que o problema é mais gritante. Afinal, os professores são os formadores de todas as demais profissões. Os 2,2 milhões de docentes da educação básica neste país são os responsáveis por ensinar mais de 45 milhões de crianças e adolescentes todos os dias. Atualmente, de maneira acachapante, 65% destes 2,2 milhões de professores sentem que a formação inicial que tiveram não foi adequada para lidar com a realidade do dia a dia que vivem em sala de aula.

Na pesquisa “Retratos da Carreira Docente”, realizada pelo Instituto Península com mais de 1.800 professores de todo o território nacional, chegamos ao número aterrorizador de que praticamente 7 em cada 10 professores brasileiros dizem que sua formação foi falha em prepará-los para os desafios da sala de aula e para dar conta das complexidades da sociedade em que vivemos.

Ser professor é uma profissão bastante desafiadora, que exige uma habilidade de lidar com diferentes perfis de estudantes, ritmos e estilos de aprendizado diferentes, com problemas típicos de crianças e adolescentes, um público com suas inúmeras particularidades. Se não bastasse isso, 73% dos estudantes brasileiros estão na escola pública, um ambiente historicamente mais vulnerável e exposto a problemas sociais mais graves.

Nos cursos de pedagogia e licenciatura de hoje a didática e a prática são extremamente desvalorizadas. E é aí que muitas perguntas ficam sem respostas. Como alfabetizar bem um estudante? Como garantir que cada criança ou adolescente aprenda, respeitando o seu ritmo e sua capacidade de absorver os conteúdos propostos? Como incluir crianças e adolescentes com deficiências? O que fazer quando um aluno chega à sala de aula com fome ou traumatizado porque sofreu maus-tratos? Muitos destes pontos foram, aliás, citados como dificuldades enfrentadas diariamente pelos professores ouvidos pela mesma pesquisa do Instituto Península.

O lado bom é que tal dificuldade não desanima os educadores. Eles sabem que realmente existe um desafio enorme, mas querem avançar: 57% não pretendem mudar de carreira. Ainda na pesquisa, 77% dos docentes afirmam estar satisfeitos ou muito satisfeitos com a profissão e 78% se consideram importantes na vida de seus alunos, apesar da falta de reconhecimento, uma vez que 56% não acreditam que são valorizados por alunos, pais, colegas e sociedade.

Nos anos recentes, outro fator chegou para piorar ainda mais a situação: a expansão do Ensino a Distância (EAD), que prevê prática, mas não de maneira condizente com a real necessidade, é cada vez mais acelerada entre os professores. Em 2017, o mais recente ano com dados disponíveis, quase dois terços dos novos universitários nos cursos de formação de professores se matricularam na modalidade EAD, de acordo com a organização Todos pela Educação. Para se formar médico é obrigatório haver prática. Para ser piloto de avião, claro, é impensável ficar só na teoria. Engenharia, Veterinária, Enfermagem... por que a sociedade brasileira rejeita uma formação a distância para essas profissões e aceita que nossas crianças sejam formadas por profissionais que jamais pisaram em uma escola ou praticaram em sua formação, como é o caso da formação EAD?

Com a influência da tecnologia na sociedade existe atualmente uma forte pressão para que a educação também se transforme. O docente de hoje não é mais somente um transmissor de conhecimento, mas, sim, um mediador que precisa ser capaz de desenvolver estratégias de ensino e aprendizagem nos mais variados contextos. Este novo professor, que deveria ser visto como o profissional mais estratégico da sociedade, precisa se desenvolver de maneira integral a fim de conseguir desempenhar o seu papel da melhor maneira.

É fundamental aprender a regular suas emoções, a cuidar do próprio corpo, refletir sobre as suas crenças e valores, incentivar um ensino que consiga ir além do ambiente e do tempo escolar e incluir múltiplas perspectivas na atuação como docente. Apenas assim ele estará preparado para garantir a aprendizagem de todos os alunos, mesmo em ambientes mais vulneráveis. Por isso, é preciso que sociedade, governo, gestores, famílias e educadores atuem de maneira uníssona, em conjunto, para valorizar a profissão e oferecer aos professores as melhores ferramentas para exercerem sua função.

A situação está colocada. A qualidade da formação dos nossos professores deve ser encarada como um marco para uma virada educacional no Brasil - e isso influenciará, tenho certeza, a formação de todas as demais profissões. Que este 2020 sirva de largada para que, agora com a opinião dos próprios professores atestada, seja dada prioridade ao tema.

Heloisa Morel é diretora executiva do Instituto Península, organização social que busca a melhoria da qualidade da educação brasileira.