Título: "O governo Lula está em dívida"
Autor: Juliana Rocha
Fonte: Jornal do Brasil, 17/10/2005, País, p. A3

A condução neoliberal da política econômica e a frustração com o ritmo de tartaruga da reforma agrária fizeram o presidente Lula perder o apoio de um dos alicerces históricos do PT, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST). O líder do movimento, João Pedro Stédile, admite, com pesar, que Fernando Henrique Cardoso assentou mais famílias que Lula. Foram 60 mil por ano do tucano, contra os 44 mil que ganharam terras do petista por ano. Depois de votar em Lula por quatro eleições, Stédile agora desconversa sobre a possibilidade de reeleição. Basta perguntar em quem ele votaria se as eleições fossem hoje: Corinthians.

Segundo o dirigente do MST, Lula só poderá recuperar o apoio do movimento se conseguir provar que voltou a defender projeto de mudança e que não deseja a reeleição somente pelo gostinho de poder pura e simplesmente.

Ele critica, ainda, a condução dos programas sociais e o contingenciamento dos R$ 3,7 bilhoes previstos no orçamento para a reforma agrária. Em mais uma brincadeira, diz que o nome do MST deveria mudar para banco MST, para receber os recursos. Imagine a grande ironia: João Pedro Stédile, banqueiro, recebendo juros do governo e até aprovando isso.

- A reforma agrária do governo Lula frustrou o MST?

- O governo Lula está em dívida com os movimentos camponeses do Brasil. Nós contribuímos para construir o Plano Nacional de Reforma Agrária, no qual há o compromisso de assentar 430 mil famílias, revitalizar o Incra e a dar prioridade às desapropriações.

O Governo caminhou, porém, a passos de tartaruga. Fizemos um acordo com o ministro da Reforma Agrária, Miguel Rossetto, em maio, para manter a meta de assentar 430 mil famílias e dar prioridade ao assentamento de 140 mil famílias que estão acampadas na beira das estradas.

- O que foi feito desde maio?

- Muito pouco. Um ministro joga a culpa para o outro. Dizem que não tem dinheiro. Esperamos que o governo crie vergonha na cara e honre com sua dívida de colocar em prática aqueles pontos assumidos.

- Ainda há tempo de progredir neste mandato?

- Nunca é tarde para fazer reforma agrária. O ministro da Fazenda (Antonio Palocci) tem que liberar os recursos necessários para que o Incra agilize as desapropriações.

Temos 140 mil famílias acampadas e o Ministério da Reforma Agrária disse que até o fim do ano apenas 15 mil famílias serão assentadas. Isso é uma vergonha.

- Quanto o governo teria que desembolsar para assentar essas famílias?

- Cada família precisa de R$ 20 mil para ser assentada, ou seja, cerca de 2,8 bilhões. O problema é que os R$ 3,7 bilhões que estavam previstos no Orçamento foram contingenciados pelo ministro Palocci.

O Governo sempre encontra uma desculpa para as verbas da área social. Já os juros aos bancos têm sido pagos pontualmente. Acho que nós vamos mudar de nome, de MST para Banco do MST para ver se o governo nos dá bola.

- Quem foi mais competente: Lula ou Fernando Henrique Cardoso?

- Estão empatados. O Governo Fernando Henrique tinha uma proposta anti-reforma agrária. Assimilou as teses do Banco Mundial de apenas aplicar a cédula da terra. A proposta de Lula é um plano de Reforma Agrária, o que é muito positivo.

- Qual dos dois presidentes assentou mais famílias?

- Pensando em números, na época do Fernando Henrique, a média foi de 60 mil famílias por ano. O governo Lula, do início do mandato até agosto deste ano, assentou 117 mil famílias (média de 44 mil famílias por ano).

O nosso problema não é tanto o número de famílias assentadas, mas que a reforma agrária seja vista como política prioritária do governo para resolver os problemas de emprego, pobreza e para enfrentar o latifúndio. Isto, o governo Lula está nos devendo.

- O presidente Lula tem chances de reeleição?

- Quem quer que seja eleito presidente da República, não vai resolver a gravidade da crise. É preciso que a sociedade discuta e construa um outro projeto de desenvolvimento que enfrente o capital financeiro.

No mundo político, porém, tudo é possível. O problema maior é que a sociedade brasileira vive uma crise econômica e social, já que o desemprego é cada vez pior e a renda continua concentrada. É uma crise política e ideológica, porque a sociedade não reconhece nos políticos os seus representantes.

- Se as eleições fossem hoje, em quem o senhor votaria?

- Hoje eu votaria no Corinthians, que vai ser campeão brasileiro (risos). É claro que o movimento sem-terra sempre votou no Lula e nos candidatos mais progressistas.

Nunca votamos no Lula por causa dos seus belos olhos ou pela língua travada. Nós votamos no Lula porque ele representava um projeto de mudança.

As eleições serão apenas em outubro do próximo ano. Para nós não importa quem serão os candidatos ou as legendas. O Lula tem que explicar se defende um projeto de mudança ou se quer se reeleger apenas porque gostou do poder.

- Pessoalmente, o senhor está decepcionado com o Lula?

- Nós nunca colocamos as lutas políticas em termos pessoais. Lula é nosso amigo, mas estamos decepcionados com o governo.

- O senhor acredita que houve o mensalão?

- Todas essas denúncias de corrupção têm sua ponta de verdade, mas a sociedade brasileira não deveria ficar presa se houve mensalão ou não, quem comprou quem ou como se comportam os deputados. A crise política, na verdade, é de representação política e de democracia. O povo brasileiro não se sente representado pelos políticos.

- Os responsáveis devem ser punidos?

- Não adianta ficar caçando bruxa ou discutindo se serão 13 ou 18 cassados. No fundo, o sistema é que precisa ser reformado. Os deputados perderam uma grande oportunidade para fazer uma reforma política a fundo para que o povo tenha direito a auto-convocar plebiscitos e a revogar mandatos.

- O MST pretende intensificar as invasões?

- As ocupações de terra nunca dependem de uma decisão nacional, nem de aumentar, nem de qual fazenda será ocupada. Todas as decisões são tomadas pelo movimento local.

As ocupações aumentam quando as famílias percebem que o Governo não está funcionando. As famílias estão acampadas na beira da estrada e começam a entrar em desespero.

- Qual foi a motivação para invadir a Fazenda do apresentador Ratinho, no Paraná, neste sábado?

- O Paraná está em plena época de plantio e os companheiros estão na beira da estrada desesperados. Obviamente, a primeira fazenda grande que encontrarem improdutiva, será invadida após uma discussão entre o grupo.

O ritmo das ocupações quem decide não é o MST, é o governo. Se o governo não faz nada, as ocupações tendem a aumentar.

-O foco de febre aftosa no Mato Grosso do Sul surgiu em um assentamento do MST?

- Não. Como há um acampamento do MST próximo da fazenda onde foi achado o foco de aftosa, alguém com má vontade divulgou que poderia ter sido a origem. Mas um acampamento na beira da estrada nem sequer tem gado.

Se fosse um assentamento do MST, ainda teria a possibilidade. A causa principal da retomada da febre aftosa é a redução dos recursos para combate da doença. A culpa é do governo e do senhor Antonio Palocci, que só enxerga os bancos.

- O MST tem vacinado o rebanho?

- Quem tem gado, sim. Até porque, cada vaca tem um registro de vacinação e é obrigatório que esteja atualizado para tirar leite e para o abate.

- O senhor tem criticado o ministro Palocci, mas ele se tornou o homem-forte do governo.

- A via campesina e os movimentos sociais em geral têm feito uma crítica dura à política econômica do governo Lula, que é a manutenção do neoliberalismo. Os principais operadores da política econômica são tucanos: o presidente do Banco Central (Henrique Meirelles) elegeu-se pelo PSDB e os diretores do ministério da Fazenda Murilo Portugal e Joaquim Levy são os mesmos da época do Fernando Henrique Cardoso.

- O presidente Lula parece satisfeito com a condução da economia.

- Essa política de juros, superávit primário e exportações é uma desgraça para o povo brasileiro. Dissemos em nossa carta ao Lula que o povo pode apoiá-lo, mas ele tem que sinalizar claramente que vai mudar a política econômica.

Estou mais do que convicto de que Lula não tem nenhuma ingerência na política econômica, que foi blindada pelos interesses dos bancos e das grandes corporações transnacionais que mantém o governo acuado.

Um governo com medo no meio de uma crise, não tem coragem de fazer mudança nenhuma, para não criar mais um foco de oposição.

- Como o senhor avalia o andamento dos programas sociais?

- Quando o governo adotou o Fome Zero, o Bolsa Família e essas outras migalhas eram apenas uma parte transitória. No Fome Zero estava incluída uma política de distribuição de renda, que previa aumento do salário mínimo para dobrar o poder aquisitivo, fazer reforma agrária e gerar empregos. Nada disso foi feito.

- O salário mínimo deveria ser aumentado para quanto?

- Segundo os cálculos do Dieese, hoje o mínimo deveria ser de R$ 440 e o projetado para maio de 2006, deveria ser uma salário de R$ 560. O governo não só não aumentou o salário mínimo como perdeu uma chance histórica de aceitar os R$ 380 quando o PFL quis fazer chantagem.

- O senhor discorda da distribuição do Bolsa Família?

- Não. Nós apoiamos, caso contrário as famílias passam fome. Mas esse tem que ser um programa transitório. Hoje é um programa central e que vai fracassar.

Até Gonzaga admitia na sua música que a esmola não liberta, apenas vicia o cidadão.

- A transposição do rio São Francisco ajudará os agricultores do semi-árido?

- Não. Existem um milhão de famílias no semi-árido sem acesso à água. No projeto atual, apenas 5% serão beneficiadas. Não é um programa de combate à seca. O Nordeste vive uma situação crônica de falta de investimentos produtivos por parte do Estado para desenvolver a região.

- O que pode ser feito para acabar com a seca no Nordeste?

- O máximo que projeto de transposição do São Francisco poderia fazer é construir um duto mais modesto e barato para de levar água para os municípios de Caruaru e Campo Grande.

Para combater a seca, as entidades da região têm a proposta de um programa de complementar formas de acesso à água, que vai desde a construção de açudes até a possibilidade de cavar poços artesianos e revitalização dos rios que podem voltar a ser perenes.