Título: Invasores
Autor: Felipe Sáles
Fonte: Jornal do Brasil, 15/10/2005, Rio, p. A25

Cerca de 120 famílias vivem no prédio do INSS, há 20 anos abandonado

Na madrugada do dia 26 de abril deste ano, três sem-tetos dormiam sob a marquise do prédio do INSS, no Centro, quando um grupo de cerca de 300 militantes, estudantes, trabalhadores e sem-tetos passou por eles e arrombou a porta do edifício, dando início à Ocupação Zumbi dos Palmares. Os moradores de rua continuam lá, mas agora têm como vizinhos cerca de 120 famílias, muitas com crianças, cuja principal luta é a conquista definitiva de uma residência longe das ruas e do processo de favelização. O pescador paraense Severino Ramos, 25, morador das calçadas do edifício há cinco anos, foi uma das pessoas que tiveram sua ''casa'' invadida no dia da ocupação do prédio há 20 anos abandonado. Ao seu lado mora Maria do Socorro Miranda, 47 anos, 15 deles sob a marquise do mesmo prédio. Cinco meses depois da ocupação, ela entrou em contato com os novos moradores do imóvel: queria reclamar de entulhos arremessados do alto do edifício.

- Já tentei morar ali, mas dizem que não tem mais lugar - afirma.

São 20 quartos distribuídos em sete andares, alguns transformados em salas de reunião, de estudos e até oficina de serigrafia, cujas camisas com o logotipo da Zumbi já foram para a Alemanha e Suíça.

No oitavo andar, os moradores tentam retomar obras paradas na época do INSS e construir outros aposentos. Segundo eles, novos moradores devem atender a dois requisitos: participação nas reuniões e concordância com o regimento, que inclui itens como proibição de drogas no interior do edifício e trabalho pela manutenção do local.

Apesar da lotação, muitos não resistem às incertezas ou obrigações do regimento. Assim, o último a entrar para a Zumbi foi Josilésio ''Ferrugem'' de Almeida, 42. Ele trabalhava numa Kombi-lanchonete, em Niterói, até que a prefeitura acirrou a repressão aos ambulantes. Veio para o Rio e comprou um ''pedaço de chão'' por R$ 500 no Centro. Depois de cercar o local e pôr uma lona como teto, não pôde mais pagar pelo espaço ao ter a Kombi rebocada. Dormiu por alguns meses com a mulher e mais três filhos no Campo de Santana, quando então conheceu a Zumbi através de João de Souza Barbosa, 44, militante desde os 16.

Na luta por moradia no Brasil há até estrangeiros. O peruano José Leonardo (nome fictício) busca asilo político no país depois de sofrer ameaças de morte ao denunciar o governo de Lima, capital do Peru. De 1983 a 1995 ele foi funcionário da Secretaria de Defesa dos Direitos Humanos, até que denunciou ao jornal La Razon esquemas de corrupção, violação de direitos humanos e morte de 60 mil camponeses. Trabalhou como motorista até se exilar no Brasil, há dois anos, ao lado da mulher e três filhos. Depois de morar de favor, encontrou apoio numa das ocupações do Estado.

- No Brasil encontrei solidariedade. Nem penso mais em sair daqui.

No dia seguinte à ocupação, o INSS entrou com um processo contra a Zumbi, avaliado pela juíza Salete Maria Polita Maccaloz, da 7ª Vara Federal. Um mês depois, a juíza visitou pessoalmente o prédio e constatou um estado de degradação não condizente com o argumento do INSS de que o local recebia manutenção periódica. Além disso, considerando a situação social dos ocupantes, determinou que antes da remoção deverão ser consultados o Conselho Tutelar, em vista do grande número de crianças, o Ministério Público, para garantir os direitos humanos, e a prefeitura, para definir um destino às famílias. Atualmente, a conta de água e luz é dividida entre governo municipal, estadual e federal.

Os ocupantes exaltam o artigo 5º, inciso XXIII da Constituição, segundo o qual toda propriedade pública deve ter função social, e o artigo 6º, que estabelece a moradia como um direito social. Daí o lema pendurado numa faixa em frente ao prédio: ''Se morar é um direito, ocupar é um dever''. Ressaltam ainda a promessa de campanha do presidente Lula de que transformaria prédios públicos desativados em moradia.

Até o momento, há um convênio entre o Ministério das Cidades e a Previdência Social prevendo a transformação de 1.073 imóveis abandonados do INSS em residências populares. O Rio seria um dos maiores beneficiados, com 18 imóveis (mais de 3 mil residências) sendo avaliados pela Caixa, dentre os quais, o prédio da Zumbi. A prefeitura garantiu parceria no convênio, incluindo os edifícios no Programa de Reabilitação da Área Urbana Central, cujo objetivo é aumentar o número de residências no Centro e na Zona Portuária e desenvolver as regiões social e economicamente. O INSS não desistiu do imóvel e prometeu novas moradias.

No Rio são várias as ocupações urbanas, de Vila Isabel à Baixada, mas, ao lado da Zumbi, a mais proeminente é a Chiquinha Gonzaga, cujo processo judicial já está estabilizado, restando apenas pendências burocráticas. Já na Zumbi, até agora, tudo acabou em samba. Um samba do músico Juvenal Cândido Silva, de 51 anos. ''Estamos aqui na Ocupação. Zumbi dos Palmares, é a nossa solução. Tudo organizado com a ajuda do povão. Zumbi é a nossa solução'', canta. Uma solução que Juvenal teve de encontrar rapidamente depois que uma bala perdida passou raspando na cabeça do filho de um ano e explodiu a televisão de seu barraco no Morro da Mangueira.