O Globo, n. 32612, 20/11/2022. Economia, p. 19

Brasil tem vantagens na corrida pelo lítio

Cleide Carvalho
João Sorima Neto


Na transição energética que o mundo tenta acelerar, um mineral tem sido apontado como essencial para deixar as emissões de carbono dos combustíveis fósseis para trás: o lítio.

Uma das principais matérias-primas para a produção de baterias para veículos elétricos e usinas de energia eólica e solar, o mineral virou objeto de uma corrida internacional. Com reserva estimada em 8% do total mundial, a terceira maior do planeta, o Brasil pode assumir um papel importante nesse processo e atrair investimentos bilionários, de mineradoras a montadoras, apontam especialistas.

Líder da gigante americana de carros elétricos Tesla, o bilionário Elon Musk, que recentemente visitou o Brasil, chegou a dizer que ter direito ao refino de lítio hoje é como ter uma “máquina de fazer dinheiro”. Com o crescimento acelerado da produção e da venda de automóveis elétricos no mundo, a cotação internacional do lítio disparou. Só entre janeiro e outubro deste ano, subiu mais de 100% e chegou a novembro a US$ 80 mil por tonelada, um recorde histórico. Com demanda acima da oferta, a tendência é de alta, enquanto novas jazidas não entram em operação.

No Brasil, 417 pedidos de pesquisa de lítio foram apresentados à Agência Nacional de Mineração (ANM) somente este ano, mais que todos os 317 registrados entre 2017 e 2021. As autorizações já somam 229 em vários estados, segundo a ANM. Os investimentos até 2030 na produção do minério são estimados em R$ 15 bilhões pelo Ministério de Minas e Energia.

A Rio Tinto Desenvolvimento Minerais, braço do conglomerado de mineração anglo-australiana, por exemplo, apresentou pedidos para pesquisar em três municípios da Bahia. As principais reservas conhecidas estão no Vale do Jequitinhonha, em Minas Gerais, onde atua a Companhia Brasileira de Lítio (CBL), pioneira no Brasil.

A canadense Sigma é uma das mais recentes interessadas no lítio brasileiro. Já investiu R$ 1,2 bilhão no Jequitinhonha. Em parceria com o conglomerado japonês Mitsui, vai produzir o hidróxido de lítio — segunda etapa da produção, após a mineração bruta — para exportar para Coreia do Sul, Canadá, EUA e Japão, cujos fabricantes de baterias concorrem com as da China, que domina o setor.

— É a oportunidade da década. O Brasil é imbatível e pode chegar a líder absoluto não só para lítio como para os outros minerais estratégicos para a transição energética, como níquel, cobalto, cobre e manganês — diz a empresária Ana Cabral-Gardner, CEO da Sigma no Brasil.

A CBL fornece lítio atualmente para fábricas de graxas, lubrificantes e medicamentos. Tem a única mina subterrânea do mundo e produz 40 mil toneladas por ano, dois terços disso exportados para países como a China. Produz ainda 1,5 mil toneladas de carbonato de lítio e manda 20% para o exterior. Segundo o CEO Vinicius Alvarenga, a empresa está investindo em tecnologia para aumentar a produtividade nos próximos dois anos. Toda a tecnologia para o beneficiamento do lítio foi desenvolvida na empresa.

— Suprimos todo o mercado doméstico e ainda exportamos. Hoje, o país não tem uma política de Estado para um material tão estratégico como o lítio, na contramão de outros países como EUA e União Europeia — observa Alvarenga.

Exportação irrestrita

Em julho passado, o governo liberou a exportação de lítio, eliminando aval da Comissão Nacional de Energia Nuclear (CNEN). Desde a década de 1970, o mineral era usado em reatores nucleares. A mudança atraiu mineradoras, mas Elaine Santos, pesquisadora do USP Cidades Globais, do Instituto de Estudos Avançados (IEA), vê riscos para o país:

— A abertura retira do país o poder de considerar o lítio estratégico, deixa apenas para o mercado o poder de regulação. Muitos países, mesmo os mais capitalistas, mantêm reserva de mercado em setores considerados estratégicos, como tecnologia e segurança nacional, como é o caso do lítio.

No início deste mês, o Canadá decidiu proteger suas reservas de lítio e determinou o desinvestimento no país de três grandes empresas chinesas.

O lítio é abundante na natureza, mas a exploração é concentrada em poucos países por causa da dificuldade e custo de extração. As minas efetivamente lavráveis são insuficientes para a demanda. A Austrália responde por 55% da produção mundial. O Brasil é o quinto produtor, atrás de Austrália, Chile, China e Argentina. Estudo do Serviço Geológico do Brasil (SGB/CPRM), de 2016, sinaliza que as reservas lavráveis de lítio no país podem ser revistas drasticamente e superar 1 milhão de toneladas. Estão em curso estudos de prospecção em Rio Grande do Norte, Paraíba, Tocantins, Bahia e Ceará.

Pureza acima de 99%

Mas a joia da coroa é o Vale do Jequitinhonha, em Minas, uma das regiões mais pobres do país que pode se beneficiar da valorização do lítio. Além da Sigma e da CBL, outras duas mineradoras planejam se instalar na área. Na região de São João Del Rei, a AMG Mineração, que opera em dez países, fechou recentemente um contrato de venda antecipada de 200 mil toneladas de lítio para os próximos cinco anos.

— O Brasil deve chegar a 2030 produzindo 100 mil toneladas de carbonato de lítio equivalente (LCE), para uma demanda mundial de 2,3 milhões de toneladas — afirma Márcio José Remédio, diretor de Geologia e Recursos Minerais do SGB/CPRM.

Ele explica que as maiores reservas do mundo estão em salares (desertos de sal), onde há riscos ambientais. O Brasil retira o lítio de pegmatitos (rochas), o que lhe dá vantagem competitiva. Além disso, segundo Rossandro Ramos, professor de Estratégia de Inovação e Gestão de Tecnologia da UFRJ e especialista em lítio, a matéria-prima brasileira tem o chamado “grau bateria”, com pureza acima de 99%.

— A extração é a céu aberto ou de minas subterrâneas e o processo é mecânico. A grosso modo, as pedras são quebradas até virarem um pó fino — diz.

Nas baterias e acumuladores de energia eólica e solar, o mineral é crucial para o desempenho, a longevidade e a densidade energética. Para o coordenador acadêmico dos Cursos Automotivos da FGV, Antônio Jorge Martins, o lítio é uma grande chance de o Brasil ir além da mineração e se inserir na cadeia global de fornecimento da indústria automotiva, cada vez mais voltada para os motores elétricos.

O presidente da Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores (Anfavea), Márcio de Lima Leite, concorda que o Brasil pode atrair montadoras com o lítio:

— Exportar commodities não pode ser prioridade do país. Temos que trabalhar pela instalação de indústrias. O que se estabelecer agora vai ficar nos próximos dez, quinze anos.

A BYD, uma das gigantes chinesas do mercado automotivo, firmou um acordo com o governo da Bahia para investir R$ 3 bilhões em um centro de produção de veículos e três novas linhas de montagem em Camaçari. A argentina Bravo Motor Company (BMC), em parceria com a gigante americana Rockwell Automation, estuda um grande complexo de mobilidade elétrica em Nova Lima (MG), com investimentos de US$ 4 bilhões (R$ 21,5 bilhões).