O Globo, n. 32612, 20/11/2022. Política, p. 4

Inclinação à esquerda

Bianca Gomes
Elisa Martins
Laura Mariano
Malu Mões
Victória Cócolo


A bancada feminina que emerge destas eleições será maior do que a de quatro anos atrás e inclinada a pautas de centro-esquerda. Levantamento feito pelo GLOBO revela que, distante da polarização que marcou a disputa presidencial mais acirrada desde 1989, deputadas e senadoras da próxima legislatura são contrárias à flexibilização do porte e da posse de armas e apoiam as cotas raciais. A maioria também é a favor do ensino da educação sexual nas escolas. As divergências são mais acentuadas em temas sensíveis, como o aborto, no qual metade das eleitas defende manter a legislação atual, e as demais se dividem igualmente entre a favor ou contra a legalização da prática.

Nas últimas duas semanas, a fim de mapear o perfil da próxima bancada feminina no Congresso, O GLOBO enviou um formulário de 42 perguntas para todas as parlamentares. Das 102 deputadas federais e senadoras eleitas ou em meio de mandato, 77 responderam sob condição de anonimato (68 deputadas e nove senadoras). São mulheres de 19 partidos políticos diferentes e de todos os lados do espectro político nacional.

A radiografia da bancada feminina aponta que, entre elas, a direita será minoria no Congresso, apesar de expoentes que conseguem vocalizar para milhões a agenda conservadora, como a deputada federal Carla Zambelli (PL), a mulher mais votada do país. Segundo o levantamento, 17% das deputadas e senadoras se declaram de direita, enquanto 44% se dizem de esquerda e 21% de centro.

O foco na nova bancada feminina vem na esteira de uma eleição na qual as mulheres foram um dos grandes entraves da candidatura derrotada do presidente Jair Bolsonaro: na véspera do segundo turno, pesquisa do Datafolha mostrava que 52% do eleitorado feminino não votaria de jeito nenhum no atual presidente.

Novos rótulos

São 64% as parlamentares eleitas que se classificam como “progressistas” enquanto 25% se autodenominam “conservadoras”. Há, porém, quem prefira outras terminologias. “Sensata”, “liberal”, “sustentabilista” e “articuladora dos extremos” foram algumas das respostas espontâneas obtidas no questionário.

A identificação com a centro-esquerda encontra respaldo na forma como essas deputadas e senadoras se comportam em relação às pautas sociais e de costumes. A ampla maioria se mostra avessa a bandeiras atreladas ao bolsonarismo, a exemplo da flexibilização da posse e porte de armas, rechaçada por 73% delas e apoiada por apenas 17%. As parlamentares argumentam que as mulheres são as principais vítimas dessa política.

— Conseguimos, ao longo de todo o ano, emplacar projetos da bancada feminina. Votamos muitas mudanças na Lei Maria da Penha, votamos a igualdade salarial entre homens e mulheres e fizemos a diferença na CPI da Covid. Sem a bancada feminina, não teríamos descoberto esquemas de corrupção — diz a senadora Simone Tebet (MDB-MS), que liderou a bancada feminina no Senado, terminou a corrida à Presidência em terceiro lugar e hoje é cotada para assumir uma cadeira na Esplanada dos Ministérios do terceiro governo Lula.

Maior rigor no combate à violência contra a mulher une congressistas de diferentes campos: 58% defendem punições mais rígidas a agressores. E a maioria concorda que é preciso ampliar o acesso aos serviços de denúncia, para que a lei seja cumprida, e levar a discussão do tema às escolas.

Outros tópicos de amplo consenso são os que dizem respeito à reserva de cadeiras para mulheres no Legislativo e à lei que equipara os salários entre gêneros: quase nove em cada dez concordam com as duas propostas. As cotas raciais também têm apoio da maioria esmagadora: 84%, enquanto somente 8% são contrárias.

A maior parte da bancada apoia ainda a educação sexual nas escolas: 56% defendem que os alunos aprendam sobre o tema em sala de aula. As contrárias somam 29% da bancada feminina.

Apesar do respaldo a pautas mais ligadas ao campo da esquerda, outros temas sofrem resistência. A liberação de derivados da maconha como o canabidiol tem uma aceitação maior quando se restringe a fins medicinais (42%). O uso recreativo tem o aval de um quinto da bancada, 21%. O mesmo vale para a descriminalização do aborto: 48% defendem a manutenção dos casos já previstos em lei.

Um quinto das parlamentares entrevistadas defende liberar a interrupção da gravidez sob qualquer circunstância. E outro grupo do mesmo tamanho, 21%, acredita que a prática deveria ser totalmente proibida. Algumas congressistas da nova legislatura afirmaram que é preciso discutir uma política para evitar a morte de mulheres em clínicas clandestinas. Outras disseram que o tema precisa ainda de mais debate.

— É natural que haja algum embate (na bancada feminina), principalmente em matérias mais ideológicas. Isso faz parte da democracia — diz a deputada federal Bia Kicis (PL-DF). — Não temos que buscar acordo onde as visões são diametralmente opostas. Aí, o pau tem que cantar, vamos para os votos. Isso é saudável.

Diversidade de agendas

A deputada, primeira mulher a presidir a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), defende ainda que as congressistas não se restrinjam apenas a pautas do universo feminino. A busca por ocupar outros espaços é uma certeza entre direita, centro e esquerda.

— Se é possível fazer um exercício de futurologia, as mulheres vão lutar pelo aumento de participação e por ampliar seu poder no Congresso, entrando cada vez mais em outras agendas — analisa a cientista política Débora Thomé, que é pesquisadora do Centro de Estudos de Política e Economia do Setor Público (Cepesp/FGV).

As respostas obtidas pelo questionário do GLOBO mostram que as mulheres do novo Congresso não são novatas na política: 79% delas já exerceram algum mandato. Destas, 40% foram deputadas, 38% vereadoras e 29% deputadas estaduais.

— Historicamente a bancada feminina tinha pontos de acordo nos quais conseguia agir conjuntamente. Quando veio a eleição de 2018, isso mudou por causa das bolsonaristas. O Congresso “endireitou”, e isso se refletiu na dificuldade de deputadas e senadoras terem agendas convergentes — acrescenta Débora Thomé.

Segundo ela, o terceiro governo Lula também terá influência sobre como os debates vão aparecer daqui em diante na bancada feminina:

— Agora vai depender de como começar o novo governo para entender como as pautas das mulheres vão caminhar. Mas não serão 90 (deputadas) agindo em bloco, a não ser em temas tradicionalmente comuns, como maternidade, equiparação de salários, violência contra a mulher e participação política.