Valor Econômico, n. 4958, 12/03/2020. Internacional, p. A15

Epidemia causa tsunami em hospitais na Itália

Miles Johnson
Davide Ghiglione


Em Bérgamo, cidade no norte da Itália, a dra. Daniele Macchini aproveitou uma breve pausa na batalha que ela e seus colegas vêm travando contra o coronavírus para fazer um alerta ao mundo.

“A guerra começou e as batalhas são ininterruptas, dia e noite. Os casos estão se multiplicando, temos uma taxa de 15 a 20 internações por dia”, escreveu no Facebook na semana passada. “Não há mais cirurgiões, urologistas, ortopedistas. Somos apenas médicos que de repente passaram a fazer parte de uma única equipe para enfrentar esse tsunami que vem devastando a todos nós. ”

O pedido de ajuda amplamente compartilhado reverbera os alertas feitos pela equipe médica que esteve na linha de frente da guerra contra a epidemia, a 8.000 km de distância, em Wuhan, onde o vírus surgiu - inclusive os de Li Wenliang, o oftalmologista que se tornou herói na China por soar o alarme, antes de sucumbir à doença.

Na mais grave situação fora da China, a epidemia de coronavírus no norte da Itália está levando o serviço nacional de saúde ao limite de sua capacidade, reforçando o desafio que outros países poderão enfrentar caso suas estratégias de contenção da doença falhem.

Ontem, um dia após o governo impor restrições nacionais a deslocamentos e contatos sociais, o número de pessoas infectadas no país aumentou para 12.462, ante 4.636 de sexta-feira. Embora cerca de 8% dessas pessoas tenham se recuperado desde então e ao menos 827 tenham morrido, 1.028 pacientes estão no momento em tratamento intensivo, ante 877 na sexta-feira.

A Lombardia, que tem um dos melhores sistemas regionais de saúde da Itália, enfrenta um aumento dos casos graves. Até terça-feira, o número de pessoas infectadas no coração industrial do país havia crescido para 7.791, incluindo 446 sob cuidados intensivos.

“Francamente, não sei por quanto tempo o sistema de saúde aguentará. Eu nem quero pensar em como isso poderá terminar”, disse ao “Financial Times” Massimo Galli, diretor do departamento de doenças infecciosas do Hospital Sacco, de Milão. “Estamos aguentando, mas outros hospitais estão em situação muito pior e é fato que sofreremos uma pressão cada vez maior nos próximos dias. ”

Giorgio Gori, prefeito de Bérgamo, tuitou: “Parece que o aumento [do número de casos] está desacelerando, mas apenas porque não temos mais leitos na área de terapia intensiva (poucos estão sendo criados e com muito esforço). Os pacientes que não podem ser tratados são deixados para morrer”.

Há sinais de que o sistema já está perto de sua capacidade máxima. No Vêneto, que tem 3,6 leitos hospitalares por 1.000 habitantes, 80% dos 450 leitos de terapia intensiva da região estavam ocupados até terça-feira, 67 deles com pacientes do coronavírus.

O temor do governo com a capacidade do sistema público de saúde absorver a pressão levou o premiê Giuseppe Conte a restringir as movimentações e os as reuniões públicas no país. “Os números dizem que estamos tendo um grande aumento no número de pessoas em terapia intensiva e, infelizmente, de óbitos”, disse Conte.

A disparidade entre o número de leitos disponíveis no norte da Itália, mais rico, e o sul, mais pobre, também preocupa. Se o sistema na Lombardia está sob uma pressão intolerável, as consequências da propagação da doença no sul poderão ser catastróficas. Até terça-feira havia 341 casos no sul da Itália, só 3,35% do total do país, com 37 pessoas em terapia intensiva.

No sul, a má gestão resultou em dívidas crescentes, e o governo central assumiu o controle de algumas autoridades locais de saúde por causa da infiltração da máfia.

A Lombardia tem 3,7 leitos hospitalares por 1.000 habitantes e 0,7 leito para doenças de longo prazo por 1.000 habitantes, segundo o governo. A Emília-Romanha, uma região na região central da Itália, tem 4 leitos hospitalares e 0,8 leito para cuidados de longo prazo por 1.000 habitantes. No ano passado, 700 mil italianos do sul foram obrigados a ir para o norte para receber assistência médica, segundo estudo da Universidade Bocconi.

No sul, a Calábria - com PIB per capita de € 17 mil, bem abaixo da média nacional de € 28 mil - conta com 2,9 leitos hospitalates e 0,5 para cuidados prolongados por 1.000 habitantes. A Campanha e sua capital, Nápoles, têm 3 leitos.

“A Calábria simplesmente não tem capacidade para lidar com uma epidemia, não há leitos suficientes nas UTIs”, disse Massimo Scura, ex-comissário regional de saúde. “O sistema aqui simplesmente não tem como comportar.”

A agência de proteção civil italiana, encarregada de coordenar a resposta nacional à crise, tenta garantir que o país tenha suprimentos e equipamentos médicos suficientes para lidar com a epidemia.

Massimo Scagliarini, executivo-chefe do grupo GVS, um dos maiores produtores italianos de máscaras cirúrgicas, disse que a agência já pediu à empresa que aumente a produção de máscaras, do nível atual, de cerca de 150 mil por mês, para 600 mil até o fim de março. Essas máscaras serão usadas pelas equipes médicas e também por policiais e militares em serviço pelas ruas das cidades italianas.

“A quantidade de máscaras de que eles precisam - estamos falando de milhões”, disse Scagliarini. “O grande problema causado pelo vírus é que os hospitais não têm recursos suficientes para gerir as necessidades de cuidados intensivos. Os recursos para terapia intensiva neste momento não são suficientes”, explicou.

“Algumas pessoas ainda pensam que as medidas em vigor são exageradas”, acrescentou Galli. “Eu gostaria de dizer a essas pessoas para virem até aqui verem o que está acontecendo em nossos hospitais.”