Valor Econômico, n. 4958, 12/03/2020. Opinião, p. A17

Como a Europa deve gerir a crise

Daniel Gros


A propagação do Covid-19 pela Europa e EUA levou a uma grande correção nos mercados financeiros e despertou clamores por uma política monetária e fiscal ativa para evitar uma recessão. Mas um olhar mais atento sugere que essa estratégia poderá não ajudar muita coisa.

A epidemia do Covid-19 vem sendo marcada pela incerteza. Tecnicamente, ela não representa um evento do tipo “cisne negro” porque já houve outras pandemias antes. Mas ela era, pelo menos até poucos meses atrás, imprevisível, pelo menos em termos específicos. E ela terá um impacto duradouro mesmo que sua evolução precisa não possa ser prevista hoje.

Por enquanto, parece que o vírus está se movendo em direção ao Ocidente. Na China, onde o vírus surgiu, o número de contágios está caindo depois que as autoridades implementaram medidas radicais - como quarentenas que colocaram a economia em suspensão por mais de duas semanas. Embora ainda seja cedo demais para dizer se o vírus foi realmente contido, a vida econômica parece estar se normalizando aos poucos, o que significa que o “choque da China” pode estar se desfazendo.

Nos EUA e Europa, por outro lado, o choque parece estar apenas começando, com um número grande e crescente de novos casos de contágio levantando o espectro de uma grave ruptura econômica. Esse risco é particularmente pronunciado na zona do euro, que poderá não suportar uma desaceleração severa sem mergulhar numa crise.

As consequências fiscais diretas da epidemia parecem administráveis. Até mesmo a Itália, que no momento é o país que mais sofre, poderia aumentar os gastos públicos em medidas para conter o vírus, sem violar as regras fiscais da União Europeia (UE).

Se esses custos dispararem - como parece provável agora que um quarto do país, que responde pela maior parte da atividade industrial e financeira, está de quarentena -, a União Europeia deverá ser capaz de apoiar a Itália além de permitir ao governo que ele carregue um déficit maior. O Artigo 122.2 do Tratado sobre o Funcionamento da UE permite ao Conselho Europeu conceder ajuda financeira a um Estado-membro que enfrente “dificuldades graves” causadas por “ocorrências excepcionais fora de seu controle”.

Em todo caso, a trajetória do Covid-19 sugere que ele deverá se espalhar mais, forçando outros Estados-membros da UE a adotarem medidas de saúde pública à custa da atividade econômica, especialmente em setores importantes como o de viagens e turismo. Além disso, as cadeias de fornecimento serão prejudicadas, não só pela paralisação temporária da máquina exportadora chinesa, como também por rupturas dentro da Europa. Cortes nas taxas de juros ou novos gastos dos governos não deverão fazer muita coisa para compensar os efeitos de curto prazo desses choques.

Os problemas mais graves deverão surgir do sistema financeiro. Embora muitas empresas possam cortar rapidamente a produção, conduzir um negócio no “modo de recuperação de desastres” ainda custa dinheiro, e as dívidas não param de vencer. Na Europa, onde os custos trabalhistas não podem ser reduzidos no curto prazo, o desafio que isso apresenta poderá ser particularmente sério.

Os problemas mais graves deverão surgir do sistema financeiro. Embora muitas empresas possam cortar rapidamente a produção, conduzir um negócio no “modo de recuperação de desastres” ainda custa dinheiro, e as dívidas não param de vencer. Na Europa, onde os custos trabalhistas não podem ser reduzidos no curto prazo, o desafio que isso apresenta poderá ser particularmente sério.

Felizmente, a maioria dos Estados-membros da UE possui algum sistema sob o qual o governo cobre os salários dos trabalhadores que se tornam temporariamente ociosos por razões que fogem do controle de seus empregadores. Esses mecanismos, que sustentariam as rendas pessoais durante a crise, são o principal motivo da improbabilidade de uma queda duradoura no consumo. Uma vez contido o vírus, os consumidores europeus terão poucos motivos para não voltarem a gastar como antes.

Mesmo assim, dois outros acontecimentos possíveis poderão jogar a zona do euro numa recessão. O primeiro é uma grande desaceleração do comércio global, que a UE pouco pode fazer para conter. O segundo é o colapso dos investimentos, que a UE pode e deveria se mexer para evitar.

A última crise na zona do euro demonstrou que os investimentos colapsam quando o sistema financeiro para de funcionar. Em sistemas baseados no mercado, como o dos EUA, isso é uma questão de prêmio de risco e acesso fácil ao crédito, algo em que os planejadores econômicos podem exercer muita influência. Para a Europa, com seu sistema financeiro centrado nos bancos, a chave para suportar a crise do Covid-19 é manter o setor bancário saudável.

Para isso, é essencial uma resposta supervisora calibrada. A mudança da supervisão bancária para o Banco Central Europeu (BCE) levou a políticas de crédito mais rigorosas e seletivas pelos bancos comerciais. Embora isso tenha reduzido os riscos bancários, aplicar condições mais duras para a concessão de empréstimos num momento de grande estresse econômico causado por medidas de saúde pública é algo que poderia punir empresas que de outra forma seriam solventes e enfrentam perdas temporárias.

O governo da Itália está fornecendo apoio financeiro direto a empresas afetadas diretamente pelas quarentenas. Mas se a crise se espalhar, o número de setores afetados (com frequência indiretamente) vai aumentar. Os governos não podem oferecer apoio financeiro a todos eles. Os bancos podem fazer muito mais, mas apenas se estiverem dispostos a negligenciar finanças ruins. Os supervisores deveriam permitir - e até mesmo encorajar - essa abordagem.

Uma abordagem de contenção, juntamente com os estabilizadores fiscais “automáticos” inseridos nos sistemas de previdência social da Europa, faria mais para amenizar o risco de crise do que cortes microscópicos nas taxas de juros.

Enquanto isso, estímulos fiscais adicionais seriam necessários somente na eventualidade improvável de a ruptura econômica ser seguida por um período de demanda deprimida. As regras fiscais da zona do euro não oferecem obstáculos a essa mistura de políticas porque elas são flexíveis o suficiente para permitir déficit  temporários que resultem de receitas fiscais menores, ou apoio fiscal a setores duramente atingidos por circunstâncias excepcionais. Mesmo assim, a epidemia do Covid-19 deverá servir como lembrete do valor da manutenção de políticas fiscais prudentes em períodos de normalidade. Os países com déficits e dívidas menores estão numa posição muito mais sólida para responder ao choque do Covid-19 do que aqueles, como a Itália e a França, que não criaram espaço fiscal.

Diante de um choque severo, as autoridades públicas precisam agir - e deixar claro que estão agindo. Mas neste caso, os instrumentos macroeconômicos usuais não deverão funcionar. Os bancos centrais e as autoridades governamentais deveriam explicar isso para o público e então concentrar suas atenções no trabalho menos fascinante de proteger a saúde pública, a renda das famílias e o sistema financeiro. (Tradução de Mário Zamarian)

Daniel Gros é diretor do Centre for European Policy Studies. Copyright: Project Syndicate, 2020.