Título: Referendo horrendo
Autor: Ubiratan Iorio*
Fonte: Jornal do Brasil, 17/10/2005, Outras Opiniões, p. A15

Dentro de poucos dias o povo brasileiro será forçado a fazer uma escolha de Sofia, inoportuna, descabida, desenxabida, imprópria, solertemente formulada e que, como quase tudo em nosso país, não atacará as causas do problema, mas apenas alguns de seus efeitos. Você, caro leitor, é a favor da proibição da venda e comercialização de armas de fogo?

Qualquer pessoa dotada de bons princípios é, por definição, avessa a qualquer tipo de violência. Em uma sociedade ideal, ninguém andaria armado, nem assaltaria, nem mataria, nem ameaçaria a vida alheia. Sendo assim, não haveria necessidade de se ter armas de fogo, a não ser em casos excepcionais, como forma de defender-se de ataques de animais ferozes, por exemplo. Qualquer cidadão minimamente informado sabe, também, que o Estado existe para fazer cumprir as normas de justa conduta, caso contrário torna-se impossível viver em sociedade, pela ausência de garantias contra os transgressores dos direitos de seus semelhantes, entre os quais aqueles que dizem respeito à vida, à liberdade e à propriedade. E qualquer habitante do Rio de Janeiro, das demais cidades importantes do Brasil e de muitas cidades do interior sabe que o Estado, em suas três esferas, não vem conseguindo exercer satisfatoriamente, há algum tempo, apesar de esforços isolados de bons policiais, sua função básica de prover os cidadãos de segurança. Aqui na Cidade Maravilhosa que, queiram ou não, é a mais importante do Brasil em termos de imagem externa e, mesmo, interna, as pessoas de bem vivem engaioladas, apavoradas e revoltadas, com justa razão, tal a onda de violência que se abateu sobre nós.

Ora, se a União, os estados e, em escala de responsabilidade menor, os municípios não têm conseguido transformar o aparato policial naquilo que a população espera que seja; se o governo federal, podendo liberar recursos oficiais para reforçar a segurança dos cariocas (e demais habitantes das outras cidades), preferiu alocá-los no Haiti e no metrô de Caracas; se o badalado Plano Nacional de Segurança até agora nada mostrou em termos de eficácia para reprimir efetivamente a violência; se esse mesmo governo faz vista grossa diante de tantas invasões criminosas de fazendas por hordas de baderneiros; se uma parcela da polícia, sendo corrupta, tem feito com que a população desacredite na instituição policial como um todo; se ninguém, a rigor, se sente seguro, o mínimo que se pode afirmar sobre a votação dos próximos dias é que se trata de um referendo horrendo, pelo lado econômico, porque representa uma enorme despesa que poderia ser alocada em investimentos na polícia, pelo aspecto puramente racional, porque será inócuo no sentido de atacar as causas do crime e, por fim, pelo enfoque moral, porque, caso o ''sim'' seja vencedor, atingirá um direito básico - embora alguns magistrados adeptos da seita do ''relativismo jurídico'' afirmem o contrário -, que é o da legítima defesa. Qualquer poste de qualquer esquina carioca, paulista, recifense ou campinense sabe que, antes de desarmar a população, seria imperioso desarmar os transgressores sistemáticos da lei, menos os que aprovaram o Estatuto do Desarmamento e esse inócuo referendo.

Bem que gostaria, nas qualidades de cidadão cumpridor de minhas obrigações e de seguidor dos ensinamentos de Cristo, de viver em uma sociedade onde ninguém possuísse armas, mas, infelizmente, como o Estado não cumpre as funções para as quais nós o pagamos, serei obrigado, em função daquelas mesmas qualidades, a votar ''não''. Para desagrado dos bandidos, dos políticos que vislumbram com intenções ''revolucionárias'' ocultas o desarmamento da população e dos defensores parciais dos ''direitos humanos'', os que se especializam em defender apenas marginais, quando a grande maioria da população é formada por humanos direitos, hoje inertes e inermes diante do quadro assustador de violência e que, uma vez desarmados, não terão as mínimas garantias de que o Estado saberá garantir o seu direito à vida.

*Ubiratan Iorio (lettere@ubirataniorio.org) é presidente do Centro Interdisciplinar de Ética e Economia Personalista - Cieep. Escreve às segundas nesta página.