Título: Escolha entre a vida e a morte
Autor: Maria Clara L. Bingemer
Fonte: Jornal do Brasil, 17/10/2005, Outras Opiniões, p. A15

A palavra ''referendo'' exprime um direito que têm os cidadãos de se pronunciar diretamente a respeito de questões de interesse geral da vida da nação. Trata-se, em suma, de um procedimento jurídico pelo qual se submetem ao voto popular leis ou atos administrativos cuja ratificação pelo povo se propõe.

O referendo do dia 23 de outubro, que se aproxima e já está batendo à nossa porta, refere-se apenas a um artigo do Estatuto do Desarmamento (lei 10.826), sobre a comercialização das armas de fogo e munição. Neste referendo, a população brasileira deverá responder à seguinte pergunta: ''O comércio de armas de fogo deve ser proibido no Brasil?''

Diante de si, o eleitor terá duas opções: a primeira, que diz NÃO. E dizendo não afirma que é favorável a que permaneça a permissão para os cidadãos brasileiros adquirirem, venderem, possuírem, portarem e usarem armas de fogo no seu dia-a-dia. A segunda opção diz SIM e representará a aprovação da lei na íntegra. Se ganhar o SIM, o TSE deverá colocar em vigor a proibição do uso de armas de fogo imediatamente.

Ao vermos o dia de tão grave decisão aproximar-se, impossível não recordarmos um trecho tão grave como belo do Livro do Deuteronômio. O capítulo 30 deste Livro pode inspirar-nos quando nos preparamos para tão importante escolha. O contexto é como segue: o povo de Israel, após a libertação do cativeiro, após a longa peregrinação pelo deserto, arde de desejo de entrar na terra prometida. E vai ouvir do próprio Deus as condições para que possa finalmente desfrutar da paz, da justiça e de todos os frutos maduros que a liberdade proporciona.

E o que mais espanta: essa condição não desce do céu qual raio de surpresa, nem brota do chão como erva inesperada. Está nas mãos e no coração humanos. Está ao alcance do ser humano e ele pode cumpri-la. Com essas palavras, fala o Senhor Deus ao povo que elegeu como seu em aliança jamais revogada: ''O mandamento que hoje te dou não está acima de tuas forças, nem fora de teu alcance. Não está nos céus, para que digas: quem subirá ao céu para no-lo buscar e no-lo fazer ouvir para que o observemos? Não está tampouco do outro lado do mar, para que digas: quem atravessará o mar para no-lo buscar e no-lo fazer ouvir para que o observemos? Essa palavra está perto de ti, na tua boca e no teu coração, e tu a podes cumprir.''

Que mandamento é esse, tão grave, importante e, ao mesmo tempo, tão próximo e ao alcance das mãos humanas? Trata-se nem mais nem menos que a escolha entre a vida e a morte, entre o bem e o mal. ''Olha que hoje ponho diante de ti a vida com o bem, e a morte com o mal.'' Trata-se de escolher entre aquilo que faz viver, que protege e cuida da vida, e aquilo que extirpa essa mesma vida, a faz morrer e fenecer, ceifando-a prematura e brutalmente. Deus, com o imenso respeito que sempre tem pela liberdade humana, não decide em lugar de sua criatura. Ao contrário, põe em suas mãos a decisão: a vida ou a morte. Cabe ao povo escolher.

O capítulo termina quando as palavras do Criador se tornam mais solenes e cheias de peso. ''Tomo hoje por testemunhas o céu e a terra contra vós: ponho diante de ti a vida e a morte, a bênção e a maldição. Escolhe, pois, a vida, para que vivas com a tua posteridade, amando o Senhor, teu Deus, obedecendo à sua voz e permanecendo unido a ele.'' Não deixa de ser algo aterrador sentir que Deus põe diante de nós, em nossas mãos, a escolha da vida ou da morte.

Parece-me, porém, que não se trata de outra coisa o que somos todos chamados a fazer no próximo dia 23: escolher entre a morte e a vida. Escolher entre continuar portando armas que provocam acidentes e fazem dos assaltos, que poderiam ser apenas furtos ou roubos, tragédias com vítimas fatais, ou entre a vida que deseja desabrochar e crescer em paz, sem dever defrontar-se com balas perdidas e assassinas pela frente.

No dia 23, é hora de referendar a vida. O fato dos cidadãos comuns não terem mais em seu poder armas de fogo fará com que a vida fique exposta a menos riscos. Além disso, as medidas que o estatuto prevê ajudarão o Estado e a polícia a combater o tráfico e sua artilharia pesada e a desarmar os bandidos. As armas que se encontram nas mãos dos bandidos e traficantes poderão ser rastreadas e, assim, a máquina do tráfico poderá ser mais fácil e eficazmente desmontada. As armas marcadas ajudarão a elucidar crimes e a investigar as fontes do contrabando.

Dia 23, temos diante de nós a vida e a morte. Escolhamos a vida, referendemos a vida. As futuras gerações nos agradecerão.

*Maria Clara Lucchetti Bingemer, professora e decana do Centro de Teologia e Ciências Humanas da PUC-Rio, é autora de A Argila e o espírito - ensaios sobre ética, mística e poética (Ed. Garamond), entre outros livros.