Título: Projeto ensina a retratar com a alma
Autor: Soraia Costa
Fonte: Jornal do Brasil, 17/10/2005, Brasília, p. D6

Durante 60 dias, curso profissional inédito mostra a deficientes visuais como utilizar seus sentidos para fotografar

Durante 60 dias, quatro deficientes visuais aprenderam a aliar seus demais quatro sentidos - tato, olfato, audição e paladar - para aprender a fotografar, atividade normalmente considerada exclusiva de quem enxerga. O projeto pioneiro, denominado Retratando com a Alma, foi ministrado pelo fotógrafo Humberto Lemos no espaço Cultural da 508 Sul e terminou na última terça-feira. A idéia do curso foi inspirada no documentário Janela da Alma (2002), de João Jardim e Walter Carvalho. O filme fala da deficiência visual em seus vários níveis, desde uma miopia discreta até a cegueira total. Em um dos depoimentos mais emocionantes do longa-metragem de 1h13 minutos, o fotógrafo franco-esloveno Evgen Bavcar apresenta seu trabalho.

Evgen começou a fotografar aos 16 anos de idade, apenas quatro anos depois de perder completamente a visão em dois acidentes consecutivos. Para fazer as imagens Evgen posiciona a câmera na altura de sua boca e conversa com a pessoa que será fotografada. A máquina é posicionada na direção da voz permitindo o enquadramento do interlocutor.

Mesmo sem referências de metodologia, Humberto procurou a Associação de Deficientes Visuais da 612 Sul e fez a proposta. O projeto recebeu o apoio da Secretaria de Cultura pelo programa Arte por Toda Parte e deve continuar no próximo ano com uma nova turma no nível básico e a turma avançada com os alunos que participaram desta última edição.

- Preparei exercícios compatíveis aos quatro sentidos restantes. Para fotografar paisagens usávamos sininhos e pessoas falando. O tato mostrava a altura e a posição das pessoas e objetos a serem fotografados. Em uma das aulas, os alunos precisavam fotografar orégano e café e usavam o olfato e o paladar para distinguir os elementos. Além disso, ao longo das aulas, cada um foi encontrando sua própria técnica - explica Humberto Lemos.

Um dos alunos, o estudante Adalberto Rodrigues, de 21 anos, ouvia os carros e fotografava de acordo com o barulho. Débora Tavares, 20 anos, que é daltônica e possui 2% de visão, conseguia perceber as diferenças de luz e usou este recurso em seus trabalhos. O pedagogo Fernando Rodrigues, 24 anos, usou sua bengala para identificar o local a ser fotografado. Claudivan Lima, que além da deficiência visual apresenta nanismo adaptou o tripé para um ângulo de 45º para enquadrar o rosto das pessoas.

- Os olhos do cego são a bengala. A partir do momento em que os deficientes visuais entram em contato com a máquina fotográfica descobrem uma nova possibilidade de visão - garante Humberto Lemos.

Um exemplo disso é Adalberto Rodrigues que encontrou na fotografia uma maneira de mostrar para o filho, hoje com quatro meses, um pouco de seu mundo. Adalberto é cego de nascença e quer tirar fotos do filho para guardar como recordação e mostrá-las ao menino quando este crescer.

Para Fernando Rodrigues, que perdeu a visão aos seis anos de idade após sofrer um deslocamento na retina, a fotografia representou um grande desafio. O curso o ajudou a treinar seus sentidos e a combater o preconceito de que os cegos não poderiam fotografar.

- Mudei meus conceitos. Sempre aceitei a cegueira sem revolta, mas não acreditava que conseguiria fazer uma fotografia. Foi um desafio para mim, mas aprendi a usar meus sentidos e a me concentrar para perceber o ambiente e fazer a foto - diz Fernando Rodrigues.

Para mostrar o resultado do trabalho aos alunos, Juliana Fonseca, assistente de Humberto Lemos no curso, fazia o desenho das imagens fotografadas em alto relevo. Desta maneira cada um identificava as características mais marcantes do trabalho e por meio das críticas dos instrutores, aprimoravam a técnica.

- Gostei de fazer o enquadramento de coisas paradas. Para fotografar pessoas, colocava a máquina próxima ao rosto e dava dois passos para trás - explica Fernando Rodrigues.

O trabalho realizado na oficina será exposto na galeria do Espaço Cultural da 508 Sul a partir de 22 de novembro.