Valor Econômico, v. 20, n. 4960, 14/03/2020. Opinião, p. A10

É preciso aprovar as reformas e evitar as ‘pautas-bomba'



Os parlamentares estão brincando com o povo brasileiro. Esta é uma forma, bastante defensável, de encarar a votação da semana passada, na qual o Congresso Nacional derrubou um veto do presidente Jair Bolsonaro e mudou o critério de acesso ao Benefício de Prestação Continuada (BPC). Em meio a uma crise mundial, provocada pela pandemia do coronavírus, em que todos os governos mobilizam recursos para preservar a vida de seus cidadãos e suas economias, os parlamentares brasileiros decidem pendurar uma nova conta de R$ 21,5 bilhões por ano nos cofres do Tesouro Nacional.

O que fizeram eles? Até agora, apenas as pessoas com renda familiar per capita de um quarto do salário mínimo por mês tinham direito de requerer os benefícios do BPC, que concede uma aposentadoria de um salário mínimo para o idoso acima de 65 anos e à pessoa portadora de deficiência. Com a derrubada do veto de Bolsonaro ao projeto de lei 55/1996, agora poderão ter acesso aos benefícios do BPC as pessoas com renda familiar per capita de meio salário mínimo por mês.

Aqui não se discute a questão do mérito da medida. Este é um debate importante que a sociedade precisa fazer.

O que se discute é a forma como o aumento do benefício foi concedido, sem que os parlamentares tivessem definido como a nova despesa será custeada. Na verdade, e isso é o que deve ser destacado, os deputados e senadores não respeitaram as regras constitucionais que eles mesmos aprovaram e que sustentam o arcabouço das finanças públicas.

O parágrafo quinto do artigo 195 da Constituição, por exemplo, diz, textualmente, que “nenhum benefício ou serviço da seguridade social poderá ser criado, majorado ou estendido sem a correspondente fonte de custeio total”.

O que ocorreu na semana passada no Congresso é ainda mais grave, pois, em dezembro de 2016, os parlamentares instituíram um no regime fiscal para o país, com a criação de um teto de gastos para a União. O princípio básico do novo regime é que, se uma despesa é aumentada, outra terá que ser cortada para que o teto seja mantido. Ou seja, é necessário fazer a compensação, pois, do contrário, o teto não será respeitado. Os parlamentares que derrubaram o veto do presidente não tiveram essa preocupação, mesmo com todos os assessores que eles possuem e que são pagos pelos contribuintes.

O desrespeito às normas constitucionais foi ainda mais longe, pois um dos artigos da Emenda 95, que criou o teto de gastos, estabelece que “a proposição legislativa que crie ou altere despesa obrigatória ou renúncia de receita deverá ser acompanhada da estimativa do seu impacto orçamentário e financeiro”.

É claro que os parlamentares não fizeram nenhuma estimativa do impacto orçamentário e financeiro da mudança de critério de acesso ao BPC. Não há previsão no Orçamento deste ano para pagar o aumento do benefício concedido de forma irresponsável pelo Congresso. Como o governo poderá cumprir a decisão dos parlamentares se não há previsão orçamentária para o gasto?

A previsão para este ano é de um déficit primário de R$ 124 bilhões do governo federal. Isto significa que qualquer despesa adicional terá que ser paga com o aumento do endividamento público. Além de todos os impedimentos legais, o governo teria que pedir autorização ao Congresso para fazer novas operações de crédito para pagar gastos correntes, em claro desrespeito à chamada “regra de ouro” das finanças públicas, que autoriza o aumento do endividamento apenas para pagar despesas de capital.

Há artigos da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) que também não foram cumpridos pelos parlamentares, a quem cabe não apenas respeitar a Constituição, como a legislação vigente. Seria maçante enumerar aqui todos os dispositivos legais que foram violados. O importante é observar que os ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) têm farto material legal para considerar inconstitucional a decisão, no momento em que ação com esse objetivo ingressar naquela Corte.

Em meio à profunda crise provocada pelo coronavírus, o ministro da Economia, Paulo Guedes, tenta mostrar ao Congresso a necessidade de aprovação das reformas, que tornaria o Brasil mais robusto para enfrentar as turbulências atuais e as que virão. Mas, além das reformas, ficou claro agora para todos que é necessário ter uma ação diuturna contra as chamadas “pautas-bomba” no Congresso, ou seja, contra os projetos que, de forma sorrateira e irresponsável, aumentam as despesas da União, descumprindo a legislação em vigor.