O Globo, n. 32566, 05/10/2022. Opinião, p. 2

O antipetismo que releva o risco de Bolsonaro

Vera Magalhães


Bastou Jair Bolsonaro e o bolsonarismo saírem fortalecidos das urnas para um monte de gente que se fez de indignada com os ataques do presidente à democracia e com sua condução negacionista da pandemia, de confronto com os estados e os protocolos sanitários, saísse do armário e passasse a declarar apoio a sua reeleição.

A forma espantosa, fleumática e convicta com que governadores, prefeitos, dirigentes de partidos do agora quase extinto centro político e até aqueles cuja reputação foi enxovalhada pelo gabinete do ódio correram para apoiar Bolsonaro mostra que o fenômeno político mais subestimado da campanha é o antipetismo.

Levantamentos de diversos institutos atestavam que a rejeição a Bolsonaro superava a de Lula. Alguns chegaram a perguntar explicitamente se as pessoas tinham mais medo da volta do petista ou da permanência do candidato do PL. Todas as medições apontavam para a ojeriza maior ao legado de Bolsonaro que aos períodos anteriores, do PT no poder.

A votação de mais de 6 milhões de vantagem de Lula sobre Bolsonaro demonstra que essa rejeição ao presidente é fortíssima e quase levou à eleição do petista no primeiro turno, mas os 51 milhões de votos dados a Bolsonaro e esses apoios institucionalmente robustos mostram que havia uma intolerância ao petismo latente na sociedade, que começou a ser acordada e pode ser revitalizada à custa de fake news, máquina pública usada sem escrúpulos e economia em recuperação.

Apesar dos sinais evidentes, que vão da divisão do mapa do Brasil entre Norte e Sul à eleição de um Congresso que manca para a direita, a campanha do PT segue achando que não há grandes inflexões a fazer no discurso nessas pouco menos de quatro semanas que restam até que os brasileiros voltem às urnas.

Tão logo foi confirmada a segunda etapa da disputa com Bolsonaro, Lula foi à Avenida Paulista discursar para animar a militância. Aliados não petistas ficaram perplexos diante da convocação de Dilma Rousseff para ser uma das primeiras a discursar.

Isso pode animar a militância petista que foi à avenida numa noite fria, diante da perplexidade de um segundo turno em termos inesperados, mas não ajuda a dissipar a ideia, que os bolsonaristas tratarão de martelar, de que, se reeleito, Lula reeditará os pilares dos governos petistas que, por mais que doa ao PT reconhecer, não são consensuais na maioria da sociedade — isso também saiu evidenciado das eleições.

Sinalizar compromissos na condução da economia que atraiam o setor produtivo e que afastem temores muitas vezes inflados artificialmente na classe média não é capitulação, mas uma necessidade prática diante de duas dificuldades postas no caminho: a primeira, vencer em 30 de outubro; a segunda, governar com um Congresso em que as forças da esquerda não têm nem cheiro de maioria.

Isso porque apenas apontar os riscos que Bolsonaro representa à democracia não será suficiente para fazer frente ao antipetismo agora revelado. E que permite até relevar as 686 mil mortes na pandemia e as ameaças reiteradas pelo presidente de “enquadrar” Poderes e de não reconhecer o resultado das eleições.

Essa diluição do horror aos riscos que Bolsonaro traz ao país é tamanha que até Ciro Gomes, em seu apoio inominado a Lula, disse não ver risco de ruptura democrática nesta eleição, contrariando o que pregou nos últimos quatro anos.

Lula precisa assimilar essa realidade e reagir rápido se quiser enfrentar a aliança dos que dizem não tolerar corrupção, mas relevam rachadinha, compra de imóveis em dinheiro vivo, dinheiro em pneu para pastores lobistas e o que mais vier. Está claro que só as fotos com pessoas fazendo o “L” com os dedos podem não ser suficientes diante de um país que parece ter memória recente mais curta que a remota.