Título: Sobre a vida e o frango gripado
Autor: José Sarney*
Fonte: Jornal do Brasil, 21/10/2005, Outras Opinioes, p. A11

Os enciclopedistas sistematizaram o conhecimento humano para que pudesse fugir das concepções religiosas, em busca da razão, da ciência experimental. Seus antecedentes eram Pascal, Galileu, Bacon e outros menos ou mais votados.

O balanço da história do homem mostra que se descobriu muito. Criamos novas áreas de conhecimento. As janelas da informática, da física quântica, da biotecnologia e tudo o mais que nos fascina nos nossos dias são marcas desse caminhar.

Muito aprendemos e descobrimos, mas é incomensurável o que falta saber. É como se estivéssemos diante de uma explosão incontrolável que a cada instante se modifica e exige um recomeço. A cada nova revelação há sempre um número muito maior de indagações. O nosso mundo passa a ser feito de perguntas. É a mesma perplexidade do homem primitivo nos questionamentos sobre tudo. E, paradoxalmente, continuamos a saber que em cada resposta há infinidade de perguntas.

Uma dessas perguntas sem resposta é o tema das doenças desconhecidas. Sobre elas o medo é moeda necessária. O que pode ocorrer nesse universo de criaturas somente visíveis nos microscópios eletrônicos e que se transformam diante do olhar do pesquisador?

É um rodeio danado para abordar a gripe do frango. A ameaça das pandemias é o mais grave problema de sobrevivência da espécie humana. Como nos programas de computador, a proliferação dos novos vírus é uma imitação da natureza.

O risco agora é maior pela rapidez das comunicações. As pestes do passado levavam dezenas de anos para caminhar de um país a outro. A velocidade, uma das conquistas dos tempos modernos, possibilita que as pandemias possam se instalar em dias ou horas.

Uma das responsabilidades das nações mais ricas, que detêm o domínio da tecnologia, é justamente defender o mundo das doenças desconhecidas. O caso da África com a Aids mostra como a pobreza é impotente diante das doenças, mas por outro lado se vinga criando doenças. A Aids veio da África assim como a gripe do frango veio das áreas mais pobres da China.

Sabemos quando a vida começou na Terra, mas não sabemos como ela começou. Assim, há uma correlação de causas e efeitos que a ninguém deixa escapar das ameaças que pesam sobre a humanidade. A história das civilizações, como mostrou Jared Diamond em Armas, germes e aço, se faz com a vulnerabilidade da vida. As doenças infecciosas são instrumentos de conquista que não distinguem pobres ou ricos, incas ou quíchuas, suíços ou sudaneses.

Os desastres naturais e epidemias nos levam a refletir sobre a necessidade de um mundo mais solidário. É tempo de abandonarmos os conceitos de destruição, para pensar na construção e na preservação da vida.

Os ideais de liberdade, igualdade e fraternidade nasceram entre o sangue das guilhotinas na Revolução Francesa. Eles, agora, têm de se libertar desse sangue, para, em vez de ser um instrumento de violência, ser um instrumento de paz.

O problema agora não são uns homens contra os outros, nem países contra países, mas a ameaça efetiva das guerras bacteriológicas feitas pela natureza, que se transforma, como pensava Lavoisier.

Daí, nosso pavor desse frango gripado, da vaca louca ou de aftosa no Kremlin.

*José Sarney escreve às sextas-feiras no JB