O Globo, n. 32567, 06/10/2022. Opinião, p. 3

O ICMS na mão da população mais pobre

Renata Mendes
Marina Thiago
Fernanda de Melo


Os tributos são a base para o desenvolvimento econômico e social de um país. São eles que financiam os serviços e os investimentos públicos. Hoje, 44% de toda a receita arrecadada pelo governo vem da tributação do consumo. Mas essa arrecadação onera quase 27% da renda dos 10% mais pobres e apenas 10% da renda dos 10% mais ricos, segundo o Ipea. Para os mais pobres, o Estado dá com uma mão e tira com a outra.

Não é fácil buscar mais justiça social na tributação do consumo. Atualmente, o principal mecanismo é a desoneração de produtos e serviços básicos. Mas esse modelo apresenta falhas, uma vez que os mesmos bens e serviços também são consumidos pelos mais ricos. No Rio Grande do Sul, dados da Secretaria de Fazenda estadual mostram que as famílias mais pobres receberam o equivalente a R$ 95 em redução de tributos sobre a cesta básica ao longo de um ano, enquanto as mais ricas receberam R$ 345 — quase quatro vezes aquele valor. Além disso, segundo levantamento do antigo Ministério da Fazenda, as desonerações nem sempre são repassadas aos preços finais, beneficiando mais os produtores que a população.

Mas há uma iniciativa capaz de mudar esse cenário: a devolução de tributos para pessoas de renda mais baixa. O modelo é recomendado por organizações internacionais como Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), OCDE (grupo dos países mais ricos) e Institute for Fiscal Studies. Tem lógica similar à adotada por países como Canadá e Japão. Seu primeiro piloto, o programa Devolve ICMS, chegou ao Brasil no ano passado no Rio Grande do Sul.

O programa devolve a 527 mil famílias de baixa renda parte dos valores de ICMS pagos por elas. Isso é feito por meio do pagamento de R$ 400 anuais, realizado em parcelas trimestrais no cartão do programa. As famílias também podem receber uma devolução variável, calculada a partir do consumo informado pelo CPF na nota fiscal. Só na primeira parcela, foram mais de R$ 43 milhões de ICMS devolvidos — valor semelhante ao que o estado gasta com incentivos fiscais para TV por assinatura (R$ 38 milhões) e para leite condensado (R$ 33 milhões). Entre as beneficiadas, destacam-se famílias que têm renda de até um salário mínimo (95%) e as lideradas por mulheres (87%). Além disso, mais de 80% dos recursos devolvidos foram gastos na compra de alimentos com o cartão do programa. Isso revela que a desoneração está saindo dos produtos e indo direto para a mão das pessoas que mais precisam.

Dessa forma, o programa atinge seus dois objetivos. Primeiro, torna a tributação sobre o consumo progressiva, ao garantir que a população mais pobre pague menos ICMS que no modelo atual de isenções. Além disso, por meio da devolução variável, as famílias passam a buscar estabelecimentos formais, em dia com seu papel de contribuinte. Todas essas conquistas têm um custo muito inferior às desonerações em vigor. Segundo a Secretaria da Fazenda do Rio Grande do Sul, o custo total da desoneração da cesta básica no estado foi de R$ 255 milhões em 2020. Estima-se que o programa Devolve ICMS devolverá R$ 175 milhões às famílias beneficiárias todos os anos.

O Devolve ICMS mostra o caminho do que pode ser feito nos estados e no país, especialmente por meio de uma reforma tributária ampla. Os candidatos à Presidência e aos governos estaduais têm a oportunidade de mudar a lógica do sistema tributário brasileiro, que hoje arrecada mais de quem tem menos, e de mostrar para a população que os tributos estão a seu serviço. E se, em vez de reduzir o ICMS da comida, o ICMS virasse comida?