Título: Dúvidas cruéis
Autor: Norma Couri
Fonte: Jornal do Brasil, 20/10/2005, Caderno B, p. B1

Agora Zélia escreve sozinha. Antes, era cada um numa ponta da mesa, geralmente no apartamento de Paris que Jorge comprou com os US$ 250 mil de adiantamento dado também pelos americanos por Seara vermelha - apartamento, agora, vendido. - Nunca mais poderia entrar lá, nem sair a pé pela nossa Rue St. Paul, caminhar até a Rue St. Antoine para encontrar o Chico Buarque no restaurante italiano Enotec.

Assim mesmo, ela trouxe peças da Rua Alagoinhas e do apartamento de Paris, que revivem Jorge.

- Simone de Beauvoir foi minha amiga a vida toda, dedica páginas para mim no livro La force des choses, e o casal me ensinou francês, com cadernos, ditados e tudo, quando morávamos no Rio e viajávamos juntos - conta.

Na parede há uma flor de ferro, vermelha, que é uma pomba, esculpida por Oscar Niemeyer para ser colocada sobre as cinzas do amigo com a placa: ''Jorge, desenhei esta flor para você. Grande escritor. Patriota e amigo que lutou a vida inteira contra as misérias da vida''. Também um belo óleo de Di Cavalcanti trocado por um filhote do cão chinês da raça Pug, Fadul, que não larga Zélia.

Há fotos de Jorge com o gato Nacib e Marcelo Mastroianni, que representou o personagem no filme Gabriela, de Bruno Barreto. Várias representações de Dona Flor por José de Dome e Floriano Batista, gravuras do amigo Picasso, um porta guarda-chuva que é um gato de Aldemir Martins, fotos de Pablo Neruda, Chagall, os afilhados de casamento João Gilberto e Astrud, de Tom, Vinicius, Sofia Loren, Glauber Rocha, Yves Montand, Cora Coralina, Pitanguy, Gilberto Freyre.

Há Diego Rivera, que deixou de fazer o retrato de Zélia porque Frida Kahlo adoeceu e ele teve de partir da casa de Neruda, em Isla Negra, no Chile, onde estavam hospedados. Jorge Amado provando o fardão da Academia Brasileira de Letras, com sandálias havaianas. Zélia, empunhando sua máquina russa, era a fotógrafa oficial e motorista do casal, exatamente como Simone de Beauvoir, que definia as duas como ''mulheres de homens inúteis''.

Difícil acreditar que Zélia ocuparia, eleita quase por unanimidade, a cadeira 23 da Academia Brasileira de Letras, que pertenceu, antes de Jorge, a José de Alencar.

Nem Zélia nem Jorge davam palpite nos livros de um e de outro, mas ela conseguiu convencê-lo a mudar o lugar do dente de ouro da personagem Teresa Batista (de Teresa Batista cansada de guerra). Uns anos antes de morrer, ele confessou que se arrependia muito, que ''queria o dente de ouro na frente''. Foi ela também que escolheu o nome da personagem Gabriela em seu livro mais famoso.

-Por acaso, contei para Jorge que nasceu a filha de uma amiga, ele perguntou como se chamaria, eu disse Gabriela, ele fez um estalo: ''Achei o nome que estava procurando''. Não sei de onde tirei Gabriela, a menina que nasceu chamava-se Alice ou coisa parecida.

Zélia conta que afugentou muitas meninas assanhadas, abrindo as pernas propositalmente em frente ao escritor ou passando a mão nas suas ''partes polêmicas''.

- Não tinha dúvidas. Quando eu via, dava logo um beliscão na moça - conta, rindo.

Lidando com lembranças, Zélia tem dúvidas do que deve ser publicado e do que deve permanecer na sombra. Escritora tardia, ela escreveu seu primeiro livro, Anarquistas graças a Deus, aos 63 anos.

- Cheguei a contar em Vacina de sapo que dona Lalu, mãe de Jorge, fez troça do presente que minha mãe, dona Angelina, teceu para ela, um xale de lã. Lalu adorava mamãe, mas nas costas dela dizia: ''Ela vem de São Paulo e pensa que na Bahia faz frio''. Mas não tive coragem de dizer que Lalu vendeu o xale para uma amiga portuguesa que nos visitava, dizendo: ''Leve, fica muito bem com seu porte, a senhora me paga qualquer hora''. Eu e Jorge só descobrimos depois.

Se a dúvida ou a saudade batem forte, Zélia entra no seu escritório e se coloca bem em frente à foto imensa que pendurou daquele que ela chama de ''Meu companheiro, meu mestre, meu amor'' e por quem não teve pudor de escrever em Vacina de sapo - depois de consultar os filhos - que ''sentia tesão''.

- Olho para o Jorge, ele pisca para mim, acabam-se as dúvidas.