Valor Econômico, v. 20, n. 4961, 17/03/2020. Política, p. A8

Vacina contra crime de responsabilidade

Maria Cristina Fernandes


O presidente Jair Bolsonaro ignora o coronavírus mas se vale dele para vacinar seu mandato. Ao colocar a vida de seus apoiadores mais radicais em risco, com apertos de mão em frente ao Palácio do Alvorada, o presidente quis mostrar que é capaz de colocar gente na rua contra tentativas de abreviar seu mandato. Foi isso o que disse no domingo a manifestantes que o aguardavam na volta de seu passeio pelo Plano Piloto - “Vocês me botaram aqui, agora têm que me ajudar a ficar e governar”. À noite, desafiou os presidentes da Câmara e do Senado a fazer o mesmo. Sugeriu que um impeachment hoje seria uma manobra das instituições, sem base popular.

Ainda que reduzidos, os grupos mais radicalizados do bolsonarismo raiz cumprem a função de conferir um fio de legitimidade a um presidente que afronta as instituições, a ciência e a responsabilidade pública. No outro lado, a capacidade de arregimentação é afetada pela pandemia. Até aliados já veem limites sendo ultrapassados, vide o governador de Goiás, Ronaldo Caiado, que é médico e ontem foi às ruas bater boca com manifestantes.

Não podem, no entanto, convocar manifestações contrárias à do presidente. Primeiro porque repetiriam o comportamento de Bolsonaro ao colocar a vida das pessoas em risco. Depois porque poderiam agravar ainda mais a capacidade de reação das instituições e da economia à crise já instalada.

Foi isso o que o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, disse, em entrevista ao Valor: “Às vezes, me dá a impressão de que o governo quer isso”. Maia não pareceu disposto a engolir a corda que o presidente lhe oferece para se enforcar: “Num momento de crise que a gente está vivendo, não será da Câmara que vai sair nenhum instrumento para ampliar ainda mais a crise”. O presidente do Senado, Davi Alcolumbre, em nota, fez coro a Maia com uma exclamação: “A gravidade da pandemia exige de todos os brasileiros e, inclusive do presidente da República, responsabilidade! ”.

A postura dos presidentes das duas Casas demonstra que o governo não terá dificuldade de fazer passar a medida provisória que acrescenta recursos ao Ministério da Saúde. Não impede, porém que, ao longo da crise, amadureça, nas instituições, uma reação ao gritante crime de responsabilidade do presidente da República.

A ver se aos parlamentares que, há tempos, já vêm sendo confrontados por Bolsonaro, se unirão empresários e investidores que têm funcionado, até aqui, como a base mais sólida do presidente da República. Sua adesão dependerá, em grande parte, da reação das autoridades econômicas do país que passaram a admitir, com astronômico retardo, que o impacto da pandemia sobre a atividade será maior do que faziam crer.

É na outra ponta, no entanto, que joga o presidente da República. Tem a seu lado lideranças religiosas como Edir Macedo, da Igreja Universal, que conclama seus fiéis a lotar seus tempos e manter o dízimo em dia, contra uma doença inventada pela imprensa e pelo Satanás. Se o presidente ainda conta com a mão de obra “uberizada” que teme a paralisação país, este apoio tende a se dissipar com o avanço da doença.

Quatro anos depois de redigir o pedido de impeachment da ex-presidente Dilma Roussef, a deputada estadual paulista Janaina Paschoal vaticinou ontem o mesmo destino ao presidente que ajudou a levar ao poder. A indignação com a irresponsabilidade de seu representante máximo, no entanto, ainda não tem como ser escoada politicamente.

Ao contrário do que diz Rodrigo Maia, Bolsonaro, no momento, está no controle do avião. Voa contra a corrente mundial, como demonstrou ao se negar a participar de teleconferência dos presidentes latino-americanos sobre o tema. Com o manche nas mãos, o presidente resolveu dar piruetas, frente a uma tripulação que tenta operar por instrumentos débeis. Sem condições imediatas para um impeachment e sem apoio para um autogolpe, o presidente pilota para arrebentar a nação.