Valor Econômico, v. 20, n. 4961, 17/03/2020. Internacional, p. A11

Narrativa chinesa destaca sucesso de seu modelo em relação às democracias

Gideon Rachman


A epidemia do coronavírus começou como um desastre de propaganda para o governo chinês. Mas agora - quando o número de novos casos caiu de forma drástica no país e aumentou rapidamente nos EUA e na Europa - Pequim reformulou a narrativa e destaca o sucesso do Partido Comunista em tomar medidas draconianas para controlar a epidemia e contrasta isso com a resposta caótica dos EUA e de grande parte da Europa.

Essa versão dos eventos é destinada tanto para consumo doméstico chinês como internacional. Se ganhar tração, os efeitos geopolíticos do coronavírus vão continuar - mesmo depois de uma vacina ser desenvolvida. A crença de que a China está em ascensão e o Ocidente está em um declínio inexorável ganhará novos adeptos. E argumentos a favor do autoritarismo e contra a democracia serão apresentados com maior ousadia - na China e no Ocidente.

Essa reviravolta parecia improvável quando o vírus se instalou na China.

Práticas não seguras nos mercados de rua chineses, seguidas por um acobertamento oficial, ajudaram a doença a se espalhar sem controle. EUA, Itália e outros proibiram todos os voos vindos da China, o que contribuiu para a sensação de que o país se tornara um pária. Mesmo nessa época, porém, vozes pró-regime na China insistiam que o Partido Comunista sairia por cima dessa crise. Eric Li, analista político nacionalista, argumentou comigo no fim de janeiro que “a capacidade estatal e a cultura coletiva são as duas características excepcionalmente fortes do sistema político da China... que no fim permitirão ao país combater com sucesso esta crise”.

Naquele momento, isso parecia um argumento bastante desesperado. Mas a China de fato confinou cerca de 60 milhões de pessoas da província de Hubei em suas casas, ao mesmo tempo em que impôs controles de circulação para mais centenas de milhões. E, por enquanto, isso parece ter funcionado. Nicholas Christakis, professor de Yale, expressou um sentimento geral ao elogiar a China por “uma façanha extraordinária do ponto de vista da saúde pública”.

À medida que a crise do vírus se abrandou na China, Pequim passou a fazer gestos de apoio ao resto do mundo. Na semana passada, médicos chineses voaram para a Itália com 31 toneladas de suprimentos médicos de emergência - e chegaram justo no momento em que os italianos reclamavam da falta de apoio de seus vizinhos da União Europeia.

A máquina de propaganda chinesa está usando essa reviravolta para derramar elogios ao presidente Xi Jinping e ao sistema chinês. O “Diário do Povo”, o jornal oficial do Partido Comunista, gabou-se recentemente de que “a China pode reunir a imaginação e a coragem necessárias para lidar com o vírus, enquanto os EUA enfrentam dificuldades”. Um artigo da agência de notícias estatal Xinhua chegou a afirmar que o tratamento dado por Xi à crise demonstra que ele tem um “coração puro, como o de um recém-nascido”.

Esse tipo de aplauso é absurdo. Mas o comportamento do líder chinês parece genuinamente bom quando comparado aos tropeços do presidente dos EUA, Donald Trump - que em vários momentos sugeriu que a doença desapareceria “como por milagre”, ou disse que ela era uma farsa organizada por seus inimigos. É fácil para muitos esquerdistas ocidentais criticarem Trump - mas é mais difícil reconhecer ou corrigir as falhas do sistema democrático americano, que colocaram um óbvio incompetente como ele na Casa Branca. O modelo dos EUA também exibiu deficiências mais amplas - como o estado periclitante de seu sistema de saúde pública, que até agora realizou um número notavelmente baixo de testes para o vírus. O resultado de todo esse mau funcionamento político pode ser a morte desnecessária de milhares de pessoas.

Enquanto isso, agora a Europa é o epicentro da epidemia. A relutância dos governos da UE e do Reino Unido de adotar medidas duras rapidamente foi em parte falta de imaginação. Mas também refletiu as dificuldades que as democracias terão para sustentar restrições ao estilo chinês por muito tempo. Com a imposição de controles rigorosos para a circulação de pessoas na Espanha, na Itália e na França, as capacidades administrativas e sociais da democracia europeia passam por um teste de estresse extraordinário.

Ainda é muito cedo para admitir uma derrota no debate com os autoritários. Na Ásia, democracias como Coreia do Sul, Cingapura e Taiwan parecem ter feito um bom trabalho em conter a propagação da epidemia sem recorrer ao confinamento total. Em vez disso, elas se basearam em testes generalizados e na rápida implementação do distanciamento social - medidas que os EUA e a UE provavelmente demoraram a adotar. O governo chinês também ainda enfrenta questões embaraçosas sobre como deixou o vírus sair de controle inicialmente e sobre o que acontecerá quando as restrições à circulação de pessoas forem amenizadas. A ansiedade oficial a respeito dessas questões se reflete no desaparecimento de algumas pessoas que se atreveram a criticar a maneira como Xi lidou com a crise. Alguns dirigentes chineses também demonstraram sua ansiedade em transferir a culpa para outros, ao sugerir que na verdade o vírus se originou nos EUA.

Esse tipo de propaganda tosca parece desnecessária, porque a narrativa mundial sobre o coronavírus já se desvia a favor da China. É claro que isso pode mudar, já que os acontecimentos se desdobram a um ritmo desconcertante. Mas, no momento, parece que a China já passou o pior - enquanto a epidemia no Ocidente está apenas no começo.

A última crise mundial- o colapso financeiro de 2008 - provocou uma perda da autoconfiança ocidental e um desvio do poder político e econômico em direção à China. A crise do coronavírus de 2020 pode forçar uma mudança muito maior nessa mesma direção.