Título: Tanto faz Lula lá ou cá
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Fonte: Jornal do Brasil, 21/10/2005, Outras Opiniões, p. A11
Depois que estourou o escândalo da corrupção e o presidente Lula ampliou a agenda das viagens internacionais do seu especial deleite, ficou nítida a impressão que a sua presença no cenário doméstico é mais visível quando a ampla cobertura da mídia acompanha as suas andanças pelos caminhos do mundo. Ou, na mais amena das hipóteses, tanto faz como tanto fez. Não é bem assim. O balanço do lucro do último giro de uma semana por quatro países do primeiro mundo - Portugal, Espanha, Itália e Rússia - contabiliza manchetes de primeira página nos jornais, matérias amazônicas nas revistas e espaço generoso nos noticiários das redes de TV.
Bastou pisar no chão de Brasília, estafado pela maratona e rumar para a tranqüilidade na Granja do Torto, para murchar o interesse jornalístico com o retorno à monótona e frouxa rotina burocrática.
Das muitas amolações que rolaram na sua ausência, empilhando problemas de urgência, como a seca que castiga a Amazônia, o surto de febre aftosa que irrompeu em Mato Grosso do Sul, contrabandeado do Paraguai; o nó cego do estouro da verba do Congresso para o pagamento dos subsídios dos parlamentares e os salários, aposentadorias e pensões dos 35 mil servidores, reajustados sem a correspondente verba orçamentária, Lula cuidou do rolo político que repica nos seus interesses pessoais, a começar pela reeleição em risco.
Sem disfarçar os sinais de exaustão, compareceu à reunião do gabinete da crise na Granja do Torto, ouviu mais do que falou, mas passou os recados táticos, que podem ser resumidos na frase registrada entre aspas: ''Não interessa a ninguém e nem ao governo prolongar a crise''. Claro, não interessa a ele. Para o governo - que governo? - não faz a menor diferença.
A temperatura esquentou com o bate-boca entre os petistas e os tucanos, enrolados pela confissão de Cláudio Mourão da Silveira - tesoureiro da campanha do presidente do PSDB, senador Eduardo Azeredo, ao governo de Minas, em l998 - que apelou para a contabilidade paralela e usou o caixa dois para escamotear da prestação de contas ao Tribunal Regional Eleitoral (TRE), R$ 10,5 milhões, mais da metade dos R$ 20 milhões do total do que foi efetivamente gasto.
O ex-tesoureiro do PSDB mineiro pulou o muro e acerta as suas quizílias pessoais tocando fogo no circo. Roupa suja para ser lavada no discreto tanque no fundo do quintal. O rebate político, na estridência da hipocrisia, excitou o bailado das retaliações da turma com os nervos à flor da pele esfolada.
Em galeio matreiro, misturam-se no mesmo saco coisas parecidas, mas não iguais. O caixa dois, agora reverenciado como ''um problema meramente tributário'' pelo presidente do PT Tarso Genro, é um sabido e veterano expediente de campanha para esconder as doações por baixo do pano de empresários, de empreiteiros e milionários e que nunca foi objeto de apuração.
O toque de refinamento do PT, promoveu o caixa dois ao valerioduto e expandiu o saque às trapaças do famoso tesoureiro Delúbio Soares e aos préstimos do eficiente Marcos Valério. Do desvio de milhões de municípios às trampolinagens internacionais, a corrupção evoluiu para o mensalão no seu mais sofisticado estágio, para a compra e aluguel de parlamentares. Esta é a podridão que respinga no Congresso e que as CPIs dos Correios, dos Bingos e do mensalão, tenta apurar, zonza diante da pilha de documentos que entopem salas.
Até aqui, o bate-boca não saiu da rixa de esquina para a avaliação séria e responsável da crise ética que corrói a respeitabilidade do Legislativo como cupim em madeira abandonada ao tempo. O atarantado presidente da Câmara deputado Aldo Rebelo (PCdoB-SP), busca parceiros e conselhos para ''melhorar a imagem da Casa''. As angústias especulativas ficam na rama, não chegam às raízes das mordomias, das vantagens, dos privilégios, da verba indenizatória, da verba dos gabinetes, das quatro passagens mensais, da semana útil de dois a três dias e demais astúcias que compõem o sujo pano de fundo da desmoralização do Poder Legislativo.
Quanto ao presidente Lula, o jeito é torcer para que termine o mandato e decida quanto quiser se será ou não candidato à reeleição. Mais um ano e menos de três meses, a gente agüenta com a complacência resignada da frustração.
Ninguém com um pingo de sensatez espera o milagre de uma ressurreição. Quanto mais o presidente viajar, melhor. A equipe da retaguarda toca o barco em água rasa, cuidando do trivial.
E no exterior, o novo líder do bloco dos ascendentes, íntimo do presidente Putin, continuará brilhando e espairecendo, para o embasbacado encanto do ministro Celso Amorim, que classificou a visita presidencial de horas à Rússia, com o passeio pela Praça Vermelha e a reverência ao túmulo de Lênin, como ''uma das melhores bilaterais que já acompanhou''.
É de ficar de queixo caído.