Título: As milícias e os cidadãos
Autor: MAURO SANTAYANA
Fonte: Jornal do Brasil, 19/10/2005, País, p. A2
Em todos os casos de corrupção que estão sendo investigados há uma coisa em comum: a concessão de serviços públicos a particulares. O assassinato do prefeito Celso Daniel, com a morte sucessiva de testemunhas, não parece ter sido resultado de assalto fortuito. A concessão dos serviços de transporte coletivo pode ter sido a causa do crime. Se o serviço fosse de responsabilidade direta do município, provavelmente o prefeito ainda estivesse vivo. Os primeiros governos republicanos, sempre que possível, buscavam reduzir essas concessões. Até mesmo para avaliar custos e lucros, os municípios e estados assumiam alguns desses serviços, sobretudo os mais sensíveis, como os de saúde, de segurança pública, abastecimento de água e coleta de lixo. A experiência aconselhou que os governos explorassem diretamente as ferrovias e as hidrelétricas e criassem grandes empresas de economia mista. Embora os detratores do Estado não queiram admitir, foi durante esse período, nos governos de Vargas e Juscelino, que o Brasil mais se desenvolveu.
Os brasileiros irão às urnas, domingo, para decidir se o comércio de armas de fogo deve ou não ser proibido no Brasil. Essa consulta não teria sentido, se o Estado tivesse mantido o monopólio da violência armada, que é prerrogativa do poder público. Os brasileiros mais velhos se recordam dos guardas civis, que andavam armados apenas de cassetetes de borracha, suficientes para impor a sua autoridade. Hoje há mais "seguranças" particulares, dispondo de armas de vários calibres, do que as forças policiais e militares das três esferas do Estado. Para o desarmamento, o primeiro passo terá de ser a dissolução desses exércitos paralelos. Embora haja interpretações estaduais que limitem o mandamento, a Segunda Emenda da Constituição dos Estados Unidos estabelece que "sendo necessária uma bem regulada milícia para a segurança de um estado livre, o direito de o povo possuir e portar armas não pode ser restringido". Em nosso caso, o Estado não dispõe de milícia bem organizada nem eficiente para manter a segurança dos cidadãos, e autoriza que ela seja substituída por corporações mercenárias, de homens treinados e armados, para garantir a segurança de quem pode pagar por tais serviços. Têm sido freqüentes as agressões desses mercenários a cidadãos desarmados com a tolerância das autoridades, e já houve até mesmo o assassinato de pessoas do povo sob simples suspeita de pequenos furtos em supermercados. A truculência desses mercenários é exposta diariamente, quando um figurão qualquer se aproxima do povo, ou quando carros-fortes se estacionam diante de um banco.
É comum a promiscuidade entre esses guardas irregulares e os policiais. Em alguns casos são os próprios policiais que, acobertados por sua condição funcional, se prestam a um segundo emprego nessas organizações. Como se sabe, também são, em geral, policiais aposentados os que organizam e comandam esses corpos, como diretores das empresas, quando não são, eles mesmos, os principais acionistas.
O principal suspeito da morte do prefeito Celso Daniel trabalhara como "segurança" da vítima, antes de assumir outros encargos. Se, de forma regular, Celso Daniel tivesse contado com a proteção oficial, em sua condição de homem público, as coisas poderiam ter sido diferentes.
Proibido o comércio legal de armas, e desarmados os cidadãos, "seguranças" continuarão no direito de usar armas para proteger o patrimônio dos ricos e a abusar desse privilégio, associando-se ao crime. São notórios os assassinatos que alguns deles cometem, os assaltos de que participam, os seqüestros de que são cúmplices. Sem forças policiais eficientes e incorruptas que a protejam, a vida das pessoas comuns dependerá apenas da sorte. E o assalto ao patrimônio público, seja por meio das negociatas, seja no roubo direto, como no caso do Banco Central e da Polícia Federal, estará autorizado. O Estado tem o dever de recuperar o monopólio das armas para proteger a sociedade inteira. Do contrário, estará conduzindo a nação ao desrespeito às leis, ao domínio da anarquia, à renúncia à soberania.