O Globo, n. 32569, 08/10/2022. Opinião, p. 3

É preciso escutar e responder

Pablo Ortellado


O povo se expressou com clareza no 2 de outubro, quando deu votação significativa a Bolsonaro e aos candidatos bolsonaristas. A mensagem não é muito simpática, mas precisamos ouvi-la. Os críticos do bolsonarismo estão hoje tomados por tanta raiva e frustração que não conseguem compreender que se trata de uma resposta a demandas reais da população e que a única maneira de desmontá-la é entender a queixa e apresentar uma resposta alternativa. Em vez disso, o que têm feito é desqualificar o bolsonarismo e, com ele, os amplos setores da população que o apoiam.

Essas formas de desqualificação em geral concebem o bolsonarismo como fruto de algum ardil ou superpoder oculto que, portanto, seria artificial, não tem enraizamento, organicidade ou legitimidade.

Bolsonaro às vezes é explicado pelas fake news, como fruto de um grande logro, da difusão de um conjunto de mentiras tão poderosas que perturbaram o juízo do eleitor. A população foi tão desorientada e envenenada por Carluxo e sua máquina de propaganda que o voto na extrema direita é apenas um equívoco, um juízo torto.

Noutra linha de explicação, Bolsonaro é fruto de uma influente rede de extrema direita articulada por Steve Bannon e financiada pelos irmãos Koch ou por poderosos e ocultos empresários brasileiros. A grande penetração do bolsonarismo se torna resultado dessa montanha de dinheiro que nunca foi identificada pelo inquérito do Supremo Tribunal Federal (STF), pelo Ministério Público ou pela imprensa, mas que deve existir. As articulações políticas internacionais do bolsonarismo — que, no final das contas, não diferem das redes dos socialistas ou dos ambientalistas —são então a causa última do sucesso, já que não seria possível um sujeito limitado como Bolsonaro ter chegado tão longe.

O bolsonarismo também às vezes é explicado pelas mídias sociais que deram voz demais à legião de imbecis de Umberto Eco, e veja só aonde chegamos. Por fim, o bolsonarismo e sua pauta conservadora às vezes são explicados como uma cortina de fumaça encobrindo uma agenda oculta neoliberal que é sua verdade e sua força. Sob o espantalho de Damares e de Olavo de Carvalho, se escondem Paulo Guedes e a Escola de Chicago.

Vou parar por aqui, mas a lista poderia seguir. O que essas interpretações todas têm em comum é não olharem para o conteúdo manifesto do bolsonarismo e explicarem sua força por algum truque, logro ou poder oculto. Não tenho dúvidas de que o bolsonarismo tem uma máquina de propaganda que distribui desinformação, articulação internacional e apoio entre os empresários. Mas isso de maneira nenhuma explica sua força social e eleitoral.

Convido então o leitor a suspender o juízo por um momento e apenas escutar as preocupações do bolsonarismo. Apenas escute as demandas. Você não precisa concordar com as respostas dadas para elas.

Em primeiro lugar, os bolsonaristas falam de família. Dizem proteger e valorizar as famílias. O que as outras forças políticas têm a dizer sobre isso? Família é importante. É o elo de cooperação e cuidado num mundo que, de resto, é muito hostil e sem coração. O discurso conservador contra o divórcio e as drogas e em atenção às crianças atende a uma preocupação genuína, sobretudo da classe trabalhadora. Se o senso comum não basta, leia o livro de Juliano Spyer (“Povo de Deus”) ou o clássico de Christopher Lasch (“Refúgio num mundo sem coração”) para entender a importância da família.

Os bolsonaristas também se insurgem contra as elites culturais. Exploram o sentimento das pessoas comuns que se sentem alheias e excluídas das universidades, dos museus e das ONGs. Quem haveria de negar que as artes e as universidades precisam abandonar sua arrogância, seu pedantismo e seu elitismo e se reconectar com o povo? Que tipo de reforma essas instituições propõem para atender a uma demanda para a qual só o bolsonarismo oferece resposta?

Temos dois caminhos para enfrentar o bolsonarismo. Podemos apenas lamentar sua existência, fruto de um artifício, um embuste produzido por Carluxo, pelo capital ou por Steve Bannon. Ou escutar as demandas e queixas da população e começar a oferecer respostas — outras respostas.