Correio Braziliense, n. 21770, 24/10/2022. Política, p. 4

Guerra contra a abstenção 

Taíssa Medeiros
Vinícius Doria


A exatos sete dias para o segundo turno de uma das mais tensas eleições presidenciais desde a redemocratização do país, em que praticamente nove entre 10 eleitores estão convencidos em quem votarão no próximo domingo, as equipes de Jair Bolsonaro (PL) e de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) quebram a cabeça para conquistar os últimos votos ainda disponíveis na prateleira do eleitorado. Mas, para uma parcela considerável dos eleitores, apenas decidir qual o candidato de preferência não basta — é preciso convencê-lo a votar.

É nessa enorme distância entre intenção e gesto que os estrategistas do presidente que tenta a reeleição e do ex-presidente que tenta voltar ao governo se debruçam para descobrir as melhores rotas de atração do cidadão que decide abster-se de votar, independentemente da motivação. Etimologicamente, a palavra abstenção vem do latim abstinentia, que significa, em tradução livre, “manter-se de fora” ou “manter-se afastado”.

Em um momento crucial da disputa pelo Palácio do Planalto — que deve ser decidida por margem estreita de votos, de acordo com praticamente todas as pesquisas de opinião —, o que for conquistado nesta reta final de campanha pode significar a diferença entre vencer ou perder a eleição. Mas, para cientistas sociais e estudiosos das eleições no Brasil, reduzir taxas de abstenção não é tarefa simples.

Desde que as urnas eletrônicas começaram a ser usadas em grande escala, no pleito de 1996, o fenômeno da abstenção vem sendo acompanhado a cada ciclo eleitoral. A primeira constatação é que o número de ausentes aumenta lentamente eleição após eleição. Em 2018, passou a barreira dos 20% e, no primeiro turno deste ano, chegou perto dos 21% (veja no infográfico). Outra, que a abstenção no segundo turno é maior do que no primeiro. Mas essa diferença vem caindo a cada eleição, com a convergência entre as taxas das duas rodadas do pleito.

No primeiro turno deste ano, 20,91% dos eleitores aptos a votar, segundo o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), não compareceram. Em números, significa 32,7 milhões de votos que não foram depositados, cinco vezes mais do que a diferença entre Lula e Bolsonaro, que ficou pouco acima dos 6 milhões de votos. É por isso que as duas campanhas tentam reduzir essa taxa.

Um dos problemas da taxa de abstenção é que, apesar da dimensão, não consegue ser medida por pesquisas. Só se sabe o tamanho da ausência depois de fechadas as seções eleitorais. Mas é possível traçar um perfil desse eleitor gazeteiro também com base nas estatísticas do TSE.

 

Renda

A abstenção aumenta na relação inversa à renda e à escolaridade do eleitor. Quanto mais pobre e com menos tempo de escola, maior é a taxa de faltosos. Enquanto mais da metade dos eleitores analfabetos não apareceu nas seções eleitorais em 2 de outubro, o nível de comparecimento entre quem tem ensino superior completo chegou perto de nove para cada 10 eleitores aptos.

Em tese, como o eleitorado de baixa renda e escolaridade é mais afinado com Lula, a abstenção tenderia a prejudicar mais o candidato petista. Isso influenciou, por exemplo, a Rede Sustentabilidade a acionar o Supremo Tribunal federal (STF) para possibilitar que prefeitos liberassem gratuitamente o transporte público no próximo dia 30.

“O impacto econômico de ir e voltar à seção eleitoral, para os eleitores de mais baixa renda, pesa no orçamento familiar. Essa liberação é importante e há impacto, em tese, positiva para Lula. Tanto que foi Randolfe Rodrigues (Rede-AP), coordenador da campanha petista, que entrou com essa ação no Supremo”, explica o cientista político André César.

Do outro lado, o bolsonarismo seguirá explorando o anti-petismo. “A campanha do medo é uma estratégia que está se mostrando eficiente. ‘Eles vão voltar, então vá votar para que eles não voltem’. Esse discurso é muito eficaz e estimula o eleitor, inclusive o indeciso, a ir às urnas”, aponta César.

Mas, para além disso, há aspectos que devem ser avaliados, entre elas o desenho regional da distribuição do eleitorado. No primeiro turno, a maior taxa de abstenção foi na Região Sudeste, que reúne os três maiores colégios eleitorais do país (São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro): 21,96%. O vencedor no Sudeste foi Bolsonaro, com 47% contra 42% de Lula. No segundo turno, mesmo com as prováveis oscilações, uma abstenção alta tende a prejudicar mais o presidente em um momento em que ele precisa somar o maior número de votos para tirar a diferença diante de Lula.

Já o Nordeste registrou a segunda menor taxa de abstenção do primeiro turno: 19,52%. Por isso, Lula dedicou boa parte de sua agenda de campanha neste segundo turno para reforçar sua liderança entre os nordestinos, em que bateu o adversário por 67% a 27%. Se a região seguir a tendência de 2018, que registrou leve alta da taxa entre um turno e outro, o ex-presidente mantém a vantagem.

Esse é o mesmo trunfo de Bolsonaro na Região Sul, que historicamente registra os menores percentuais de ausência. No primeiro turno, 19,34% dos eleitores de Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul não compareceram. A região é reduto bolsonarista, que deu ao presidente sua vitória mais expressiva: 54,6% a 36,8%.

 

Polarização

Os números do primeiro turno também ajudam a responder uma dúvida que motivou debates entre especialistas: uma eleição tão polarizada quanto esta tem força para atrair mais eleitores às urnas, dado o grau de engajamento das pessoas para um lado ou para o outro? A resposta, com base nos resultados do TSE, é não.

Apesar da disputa que divide o país, provoca brigas em família e algumas tragédias decorrentes da intolerância, a abstenção segue em alta. Para comparar com outra eleição apertada, a de 2014, entre Dilma Rousseff (PT) e Aécio Neves (PSDB) — quando a então presidente conquistou a reeleição por uma diferença de apenas 3,5 milhões de votos —, a abstenção no segundo turno ficou em 21,1%.

Para o cientista político e diretor-geral do Movimento Voto Consciente, Humberto Dantas, os dois candidatos estão numa briga que vai além da escolha do eleitor. “Não é só uma disputa por voto, é uma disputa por intensidade, por uma capacidade extraordinária de mobilização”, observa.

Dantas destaca que as intenções de voto estão proporcionais às taxas de rejeição dos candidatos. “Significa dizer que o eleitorado rejeita na mesma força que aprova. Em 2014, na véspera do segundo turno, Dilma tinha 52 pontos no Datafolha e Aécio, 48. E foi rigorosamente o que saiu da urna — a gente tinha a rejeição de Aecio em 42 e da Dilma em 38. Ou seja, essa é uma eleição para além da intenção. A gente está espelhando isso em rejeição”, salienta.

No primeiro turno do pleito, a abstenção registrada foi sutilmente maior do que a de 2018. “A gente precisa considerar essa história de justificar voto por aplicativo. Talvez se tenha tirado de circulação gente que invalida o voto. Não se pode desprezar o fato de que a gente diminuiu pela metade, este ano, o número de votos brancos e nulos em relação a 2018. Claro que a polarização influencia, mas, talvez, a diminuição do voto branco e nulo não seja só por causa de uma eleição acirrada, mas, também, por uma questão de um eleitor falar: ‘Poxa vida, pra ir até lá para votar branco e nulo, prefiro fazer aqui pelo aplicativo’”, destaca Dantas.

Independentemente do cenário atual, historicamente o segundo turno tende a registrar maior desmobilização do eleitorado. “Vários estados não têm pleito para governador e já houve a definição dos deputados. Como são mais de 10 estados onde não haverá segundo turno, há uma desmobilização natural dos eleitores. E, aí, as duas campanhas presidenciais tem que se mobilizar para levar o eleitor às urnas”, observa André César.