Valor Econômico, v. 20, n. 4961, 17/03/2020. Legislação & Tributos, p. E2

STF, aposentadoria e contribuição adicional

Cristiane I. Matsumoto
Lucas B. Oliveira


Em um cenário pós aprovação da reforma da Previdência, temas correlacionados até então deixados de lado retomam o protagonismo do debate. Dentre os mais calorosos, está a controvérsia a respeito do financiamento da aposentadoria especial. Qual o papel das empresas no custeio deste benefício? Qual a posição da Receita Federal em face da arrecadação bilionária pretendida?

A aposentadoria especial é um direito concedido àqueles empregados que trabalham de forma permanente expostos a agentes nocivos (ruído, vibração etc). A depender da gravidade da exposição, o empregado terá direito à aposentadoria especial com 15, 20 ou 25 anos.

Esse regime excepcional é financiado por uma contribuição a cargo das empresas de 6%, 9% ou 12% incidente sobre a folha, adicional às contribuições regularmente recolhidas de Riscos Ambientais do Trabalho (RAT), que variam de 1% a 3%, dependendo da atividade econômica.

A contribuição adicional deverá ser recolhida sempre que houver a comprovação de que determinado empregado está exposto, de forma permanente, a determinado agente nocivo em patamares acima dos limites de tolerância definidos por normas regulamentadoras.

É consenso que existe uma relação entre o benefício (aposentadoria especial) e o custeio (contribuição adicional das empresas). A problemática surge quando o senso comum não leva em consideração as particularidades de um regime extremamente complexo, no qual a relação entre custeio e benefício não é tão direta quanto parece.

Em emblemático julgamento de 2014 sobre o benefício aposentadoria especial (ARE 664335/SC, em sede de repercussão geral), o Supremo Tribunal Federal (STF) analisou se a utilização de um equipamento de proteção individual (EPI) seria justificativa para que o INSS negasse o pedido de aposentadoria especial de um empregado que trabalhou exposto ao agente nocivo ruído.

O julgado foi concluído com a fixação de duas teses: 1º- o direito à aposentadoria especial pressupõe a efetiva exposição do trabalhador a agente nocivo à sua saúde, de modo que, se o EPI for realmente capaz de neutralizar a nocividade não haverá respaldo constitucional à aposentadoria especial; 2º- na hipótese de exposição do trabalhador a ruído acima dos limites legais de tolerância, a declaração do empregador, no âmbito do Perfil Profissiográfico Previdenciário (PPP), no sentido da eficácia do equipamento de proteção individual, não descaracteriza o tempo de serviço especial para aposentadoria.

A fixação da segunda tese gera questionamentos nas empresas que, em maior ou menor escala, lidam com a exposição dos seus empregados a agentes nocivos. A principal dúvida que paira é a seguinte: considerando que o trabalhador exposto a ruído acima dos limites legais de tolerância, mesmo com uso eficaz do EPI, terá direito à aposentadoria especial, empresa precisará recolher a famigerada contribuição adicional sobre sua remuneração?

Há atualmente um projeto de lei no Congresso Nacional (PL nº 245, de 2019) que visa regular a parte do benefício, dispondo sobre os critérios de acesso à aposentadoria especial. Por outro lado, não há qualquer norma que disponha de forma clara sobre o custeio desses benefícios em situações específicas.

No Plano de Fiscalização da Receita Federal para 2019 já se apontavam atuações na ordem de R$ 1 bilhão e intensificação na fiscalização para os anos subsequentes com esforço coordenado entre Receita, INSS, auditores do trabalho, Ministério Público do Trabalho e Polícia Federal.

Mais recentemente, essa orientação foi formalizada no ADI n° 2, de 2019, dispondo de forma taxativa que “ainda que haja adoção de medidas de proteção coletiva ou individual que neutralizem ou reduzam o grau de exposição do trabalhador a níveis legais de tolerância, a contribuição social adicional para o custeio da aposentadoria especial (...) é devida pela empresa”.

Acontece que há uma série de ressalvas à interpretação da Receita Federal. Primeiro, o STF julgou em 2014 um processo que trata do benefício aposentadoria, e não do custeio. Isso porque, ao fornecer o EPI, a empresa está cumprindo com sua função social, promovendo um ambiente de trabalho hígido a seus trabalhadores, além de atender ao princípio da valorização social do trabalho.

No entanto, o ponto crucial que parece ter sido desconsiderado pela Receita Federal é que a relação entre custeio e benefício não é tão direta assim. Explica-se: existe uma disposição (artigo 195, parágrafo 5º) na Constituição Federal que veda a majoração ou extensão do benefício sem a correspondente fonte de custeio. Acontece que este dispositivo não é aplicável no caso da aposentadoria especial, pois a fonte de custeio deste benefício sempre existiu.

No próprio julgado do STF em 2014, os ministros deixaram expresso que essa vedação seria voltada ao legislador ordinário, não sendo aplicável aos benefícios previstos na própria CF (como é o caso da aposentadoria especial). Vale lembrar que a contribuição adicional foi instituída posteriormente, ou seja, em 1999, com o advento da Lei n° 9.732, de 1998.

Em suma: os trabalhadores expostos aos agentes nocivos (especialmente ruído) acima dos limites legais de tolerância, mesmo com uso eficaz do EPI, deverão encontrar respaldo na decisão do STF para solicitar sua aposentadoria especial perante o INSS.

Esse fato não implica autorização para que a Receita Federal cobre indistinta e indiscriminadamente a contribuição adicional das empresas, sobretudo daquelas que investem em saúde e segurança ocupacional e cumprem com todas as exigências da legislação.

Cristiane I. Matsumoto e Lucas Barbosa Oliveira são, respectivamente, sócia da área Previdenciária do Pinheiro Neto

Advogados e associado da área Previdenciária do Pinheiro Neto Advogados

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