Título: O professor dá o recado
Autor: Rozane Monteiro
Fonte: Jornal do Brasil, 19/10/2005, Internacional, p. A8

Na virada da década de 80 para a de 90, o então secretário-geral do Partido Comunista russo, Mikhail Gorbachev, conduzia a União Soviética a uma transformação inexorável da qual o próprio país não sobreviveria. Ciente do risco, estava à frente de um ambicioso e arriscado projeto de abertura na ditadura que era o contraponto aos Estados Unidos no mundo marcado pela bipolaridade da Guerra Fria. Enfrentou e derrotou um golpe de Estado para impor uma visão política voltada para o diálogo e não para o unilateralismo. Ontem, em palestra de líderes em Londres, o mesmo Gorbachev disse que a superpotência americana hoje precisa do mesmo remédio que aplicou às lideranças comunistas pouco antes de a URSS se dissolver de vez, em 1991. ¿ Os EUA estão necessitando de uma dose de sua própria perestroika ¿ disse Gorbachev, referindo-se às reformas de liberalização que imprimiu nos países da Cortina de Ferro, arrasados por uma economia engessada pelo excesso de burocracia e ineficiência do Estado.

É Ironia em estado puro. Quando enfrentou os defensores da mão-de-ferro do estado soviético, Gorbachev planejava recuperar a capacidade produtiva do país. Em célebre discurso na época, lamentou que Moscou pudesse produzir um satélite de alta potência, mas não fosse capaz de, por exemplo, fabricar eletrodomésticos que merecessem a confiança do cidadão soviético comum.

Ontem, lembrou o mantra que vem repetindo especialmente após o início da invasão americana no Iraque. Associa a intervenção ao que chama de ¿complexo de superioridade do Ocidente¿.

¿ O mundo não vai aceitar ditadura ou dominação. É preciso uma nova visão, de novas políticas. Há uma necessidade de diálogo ¿ frisou, didático, para a platéia, em uma alusão velada ao papel hegemônico e à feição agressiva da política externa aplicada pela administração Bush.

No mesmo evento, ainda seriam ouvidos o ex-presidente americano Bill Clinton e a ex-secretária de Estado dos EUA, Madeleine Albright, que nasceu na antiga Tchecoslováquia e foi parar nos Estados Unidos com a família para fugir da ditadura comunista em seu próprio país.

À certa altura, Gorbachev respondeu perguntas da platéia. Um dos participantes quis saber o que achava de líderes que expressam sua fé publicamente. Não polemizou, mas falou bem claro nas entrelinhas:

¿ Toda pessoa é livre para ser religiosa e isso inclui os líderes. Mas um líder não deve nunca desrespeitar outras religiões e as pessoas de outras religiões. Também deveriam ser capazes de avaliar situações, formular metas e convencer pessoas de seus planos ¿ afirmou.

Para Kaare Strom, professor de Ciências Políticas da Universidade da Califórnia em San Diego não há dúvidas de que o ex-secretário-geral do PC russo quis atacar indiretamente a política americana, tanto a interna quanto a externa. A primeira, pela supressão de liberdades em andamento sob justificativa de uma ação necessária contra o terrorismo. A segunda, pelo traço unilateral que guarda semelhanças ao comportamento da ex-URSS.

¿ Fica bastante claro que Gorbachev está mandando uma mensagem aos EUA, dizendo que aqui deveria haver mais espaço para a voz da oposição à política que Washington implementa. É claro que o livre debate em uma nação e em todo o mundo é sempre o melhor caminho e temos sempre de lembrar que Gorbachev foi o pioneiro nesse sentido. Se não fosse por ele, talvez a democracia não tivesse o desenvolvimento que teve no mundo quando se deu o colapso da União Soviética ¿ avalia o professor ao JB. Strom lembra, no entanto, que o processo de abertura na URSS não necessariamente gerou progressos econômicos. Pelo contrário, expôs ainda mais as fraquezas de um sistema viciado e incapaz de responder às necessidades de crescimento de que a população necessitava. Gorbachev sempre concordou com isso e fez o mea culpa em Londres:

¿ Demorei muito a agir. Quando você não pode seguir o ritmo dos acontecimentos, acaba punido por isso ¿ concordou.

A palestra do ex-líder comunista coincidiu com a morte de um de seus maiores aliados durante o processo de abertura. Uma doença crônica não divulgada derrotou ontem Alexander Yakovlev, de 82 anos, considerado o mentor intelectual da perestroika. Parceiro fiel, era o homem que protegia intelectuais e artistas perseguidos pelo regime e se desligou do partido comunista, o que parecia inimaginável, quando houve o golpe para tirar Gorbachev do poder, em 1991. Foi o fim de sua carreira política.