O Globo, n. 32572, 11/10/2022. Opinião, p. 3

O que é o bolsolão?

Carlos Andreazza


Bolsolão é como poderia — deveria mesmo — ser chamado o orçamento secreto. Talvez secretão. Não será tarde. Bolsolão: o nome popular do esquema secretão de corrupção — de controle autoritário do poder no Parlamento e de compra de votos, na ponta, em período eleitoral — que produz obras de péssima qualidade, quando entregues, e roubo de dinheiros públicos.

Falo de bilhões. Cuspidos, via laranjas, sem fiscalização, para o ralo de municípios e para o bolso de ratinhos e ratões. Em prol do desequilíbrio da disputa eleitoral e, mais amplamente, da corrosão da própria estrutura republicana.

Não. A mamata não acabou. Orçamento secreto, artifício clandestino, é bolsolão; e é corrupção.

Um ciclo perfeito, que sofisticou a natureza patrimonialista do assalto ao Estado e ungiu senhores feudais em plena República. A barbárie começa no Congresso. Para seduzir votos numa localidade, o parlamentar, um donatário, tem de se manter fiel aos comandos dos donos do Parlamento. E então o dinheiro sai; a erguer propaganda na capitania e cultivar ricos. Um mecanismo que gera concentração de poder, distribui a reeleição de escolhidos e faz ascender novas empreiteiras.

Corrupção.

Poder concentrado, fidelidade no Congresso em troca de meios econômicos para condicionar votos nas urnas e pilhagem de dinheiros públicos que seriam destinados à saúde, à educação, ao saneamento etc.

E por que o orçamento secreto deveria se chamar bolsolão? Porque Jair Bolsonaro é o pai da criança. Pai e um dos beneficiários dessa engenharia a partir de cujo advento firmou sociedade com o consórcio parlamentar que feudaliza o Legislativo.

E por que Bolsonaro é o pai do orçamento secreto, donde bolsolão?

Poderia responder citando simplesmente a mensagem presidencial número 638, de 3 de dezembro de 2019, por meio da qual, sob exposição de motivos do general Ramos, o presidente fundou o uso pervertido da emenda do relator como conhecido hoje. Está documentado, assinado por Bolsonaro.

Qual a história? Em novembro de 2019, o Parlamento tentou corromper o caráter estrito da emenda do relator, originalmente destinada a correções materiais no Orçamento, e transformá-lo em mais uma superfície para avançar, sem planejamento, sobre a gestão orçamentária. Bolsonaro vetou. O enredo que ele conta termina nesse ponto. Sim, vetou. E aí? A trama continua... O Congresso tentou, então, derrubar o veto; mas — atenção — não reuniu votos suficientes para resgatar a proposta.

Estaria enterrado o futuro orçamento secreto, não fosse a súbita mudança de Bolsonaro que, três semanas depois, remeteria ao Legislativo a alteração que afinal criou o orçamento secreto conforme ora praticado.

Nascia o bolsolão, com uma modificação em relação ao pretendido pelo Congresso: o Executivo mataria a impositividade do bicho e manteria o controle sobre a liberação da grana. Arranjo bom para todos.

Sob a fachada do relator, o parlamentar fiel garantiria uma cota do Orçamento, determinada arbitrariamente pelos dois ou três proprietários do Parlamento, a ser desovada via uma dessas codevasfs. Tudo carimbado por um ministério.

(Aliás, como está a investigação do caso da fraude ao SUS no Maranhão?)

Nascia o bolsolão, expressão concreta da sociedade que blindaria Bolsonaro e, adiante, elegeria Arthur Lira e Rodrigo Pacheco presidentes da Câmara e do Senado; e desde então a paz: o Congresso de repente desaparecido dos ataques bolsonaristas contra as instituições da República. Bolsonaro convencido de que, a partir do desenvolvimento daquela máquina, blindagem garantida, poderia ser competitivo em 2022. Aqui estamos.

No último artigo, escrevi que o orçamento secreto fora o grande vencedor do primeiro turno, ao mesmo tempo reelegendo-se e sendo o grande eleitor. Reelegeu o Parlamento. Encaminhou a reeleição de Lira à presidência da Câmara, o que equivale também à reeleição do controle do mecanismo. Reportagem de Breno Pires, na revista piauí, dá a medida da força eleitoral do troço. O bolsolão fez bancada bolsonarista. A gestão autoritária de quinhão bilionário elegeu, em contagem conservadora, cerca de 250 parlamentares.

A competitividade eleitoral do bolsonarismo neste 22, palpável na formação do Congresso, deriva também — e sobretudo — de um esquema de corrupção. Esse é o ponto. A corrupção. A corrupção que financia o movimento autocrático. A sociedade prospera.

Perde-se muito tempo tratando o orçamento somente pela falta de transparência. Claro que é relevante. Até porque o Parlamento desrespeitou ordem do Supremo a respeito, respondendo a uma determinação da Corte por publicidade com a criação de mecanismos que aperfeiçoaram a multiplicação de laranjas. Ok.

Mas o ponto fundamental, o grave, é mesmo este: a musculatura de Bolsonaro, neste segundo turno, vai anabolizada pelo sucesso de um esquema de corrupção que, reeleito o presidente, tem corpo — caixa — pronto para bancar um Orbán.