O Globo, n. 32572, 11/10/2022. Brasil, p. 11

Boi sustentável

Ana Lucia Azevedo


A aurora chega com a cantoria de curicacas, aracuãs, siriemas, tachãs e carões, parte de uma das maiores orquestras naturais do planeta. Ao canto das aves se junta o som do berrante dos peões e o mugido do gado que segue para o pasto. São vozes do Pantanal que todos os dias se fundem, assim como biodiversidade e pecuária se misturam, num arranjo pantaneiro nascido há quase três séculos e de cuja renovação depende o futuro do bioma e da economia da região.

Uma esperança é a pecuária sustentável que, com tecnologia e ciência, usa a conservação de áreas naturais para aumentar a produtividade. Para 2022, se espera um aumento de 100% da produção de carne pantaneira sustentável.

Na Fazenda Santa Fé do Corixinho, em Corumbá, na Nhecolândia (MS), mesmo sob o sol do meio-dia, com o termômetro acima dos 35ºC, o campo de mimoso, um capim nativo, refresca o olhar.

Paisagem singular

A relva mantém o frescor e a macieza despeito do calor. Serve de pasto a vacas, capivaras e veados. Pastam juntos e em paz. Aqui e ali, tatus, lobinhos e tamanduás. É uma paisagem singular, que faz do Pantanal o único bioma onde a pecuária, sua principal atividade econômica, é uma das vocações que menos conflito causa com o ambiente. E para um futuro sustentável isso deve se manter, dizem cientistas, pecuaristas e ambientalistas.

— A pecuária é uma vocação do Pantanal. Defendemos as boas práticas, para gerar renda sem agredir o ambiente. Quem não quer comer carne de desmatamento poderá optar pela pantaneira — diz Gustavo Figueirôa, do Instituto Socioambiental da Bacia do Alto Paraguai SOS Pantanal.

O desafio é evitar a perda de áreas naturais num bioma onde mais de 95% do território são propriedades privadas, em sua maioria fazendas de gado. A pecuária pantaneira é quase toda extensiva e usa pastagens naturais. Mas o desmatamento avança e se espalha a criação intensiva, com pastos exóticos, para aumentar a produtividade e facilitar o manejo.

A área ocupada pela pecuária cresceu quase quatro vezes de 1985 a 2021, segundo o MapBiomas. No período, o Pantanal teve a cobertura de áreas naturais reduzida de 95,58% para 83,01%. A despeito da redução, permanece o bioma mais conservado. Mas para que esse cenário se mantenha, é preciso misturar modernidade e tradição. Na Santa Fé do Corixinho, uma das fazendas dedicadas à criação sustentável no Pantanal, se vê em meio aos pastos naturais a multiplicação de cercas elétricas e painéis solares.

— Experimentamos técnicas e tecnologias, investimos no futuro. Há resistência, mas é possível. Porém, é preciso apoio, tanto por parte de incentivos quanto técnico — afirma Eduardo Cruzetta, proprietário da Santa Fé do Corixinho e presidente da Associação Pantaneira de Pecuária Orgânica e Sustentável (ABPO).

A ABPO tem 87 associados, que juntos possuem 450 mil cabeças de gado certificado. Em 2021, seus integrantes abateram 40 mil cabeças, ou 10 mil toneladas de carne. Para 2022, a expectativa é dobrar. O aumento se deve, sobretudo, à adesão de mais pecuaristas. A maioria chega atraída por incentivos fiscais. A meta para 2023 é conseguir o selo de indicação de origem geográfica para a carne do Pantanal.

Vaca orgânica premium

Uma fazenda sustentável tem que conduzira pecuária em harmonia com a conservação da biodiversidade e seus serviços ecossistêmicos, explica Walfrido Moraes Tomas, da Embrapa Pantanal. Tomas é um dos desenvolvedores da Fazenda Pantaneira Sustentável, um sistema de apoio para a avaliação da pecuária , que analisa mais de cem indicadores. Ele destaca que é essencial à conservação o bom uso das pastagens nativas, principal recurso natural e base da pecuária no bioma.

A Santa Fé do Corixinho é média para padrões pantaneiros, tem 11,3 mil hectares, com 4.500 cabeças de gado. Destes, 250 são vacas angus orgânicas. A criação da vaca orgânica segue um protocolo de rigidez muito maior do que o da sustentável. É uma carne super premium, de produção limitada e cuja produção atende a uma série de exigências e custa até 70% mais caro. Na criação das vacas orgânicas não se usa antibióticos, elas tomam homeopatia preventiva. Nem pensar em usar produtos químicos ou transgênicos.

Já na pecuária sustentável é feito o manejo de pastagens adequado às condições ambientais, utilizando técnicas que não prejudiquem ou reduzam ao máximo os danos à natureza.

As práticas ecológicas aumentam a produtividade. Mas dão mais trabalho de início, demandam mão de obra mais intensiva e os ganhos chegam no longo prazo.

— Enquanto uma área de pecuária convencional se paga em cerca de quatro anos, na sustentável leva sete anos. Porém, a sustentável pode produzir de duas a três vezes mais porque se beneficia de serviços oferecidos pela natureza —frisa Cruzetta.

Um desses serviços é a adubagem do solo. O sombreamento permite que os animais andem menos e tenham mais conforto térmico. A água ajuda a limpar os campos de plantas invasoras, que atraem parasitas e não são comidas pelo gado. No planalto, se usa agrotóxico na limpeza dos campos. Na planície, a natureza faz esse serviço melhore de graça.

A energia solar se espalha pelas fazendas e permitiu intensificar o uso de internet e seus aplicativos que ajudam na produtividade, eletrificar cercas quilométricas e bombear água para o gado durante a seca.

A disseminação da tecnologia esbarra nas deficiências educacionais do pantaneiro.

— O maior desafio do Pantanal é a educação. Ela é fundamental para implantar tecnologia, fixar as pessoas na terra e manter as famílias unidas — enfatiza Cruzetta .

Difundir o novo também é desafiador numa terra onde se respira tradição. Deixando revelar no rosto a incredulidade, peões da Santa Fé do Corixinho escutam Cruzetta explicar que devem massagear os bezerros enquanto os tatuam ou vacinam, pois os ajudará a perder o medo do ser humano. Acostumados com a lida rude, para os peões, a massagem em bezerro parece mais exótica do que o drone que ajuda a monitorar o rebanho.

O Pantanal tem abundância de beleza e biodiversidade. Mas é um poço de problemas logísticos. Um dos maiores deles o transporte. Longo é o caminho do gado, do pasto ao prato. Nos pantanais profundos, quando não há água, há lama. Na seca, areais e atoleiros.

Há consenso de que é preciso haver incentivos para os proprietários rurais que adotem práticas sustentáveis.

— A carne pantaneira custa mais caro para produzir e, por isso, o produtor precisa ser compensado. Um caminho são as carnes premium e com indicação de origem geográfica — diz Figueirôa.

Cruzetta salienta que, no fim das contas, o destino da pecuária pantaneira está nas mãos do consumidor:

— O consumidor é soberano. Ele é que vai decidir se quer a carne sustentável.