O Globo, n. 32575, 14/10/2022. Opinião, p. 3

Múltiplos riscos à democracia

Flávia Oliveira


O risco democrático que o bolsonarismo representa não se restringe aos ataques do presidente da República a autoridades eleitorais — em particular, ao ministro Alexandre de Moraes, presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) — nem às insinuações recorrentes contra a segurança e a credibilidade das urnas eletrônicas. Há muito mais. A Constituição de 1988 e o Estado Democrático de Direito também saem feridos quando a percepção supremacista dos extremistas de direita avança sobre mulheres, negros, indígenas, homossexuais, pessoas trans e sobre os direitos à educação, à saúde, a manifestações, e, agora, à liberdade religiosa. É um grupo político antidemocrático de cabo a rabo, de A a Z.

Mesmo após a divulgação do resultado do primeiro turno, realizado em todo o país sem intercorrência na votação ou na apuração, nem Jair Bolsonaro nem as Forças Armadas atestaram publicamente a integridade do pleito. Até hoje, os militares não divulgaram o relatório de fiscalização, por óbvio, positivo. Nos subterrâneos digitais do candidato à reeleição, circulam mensagens que põem em dúvida a totalização dos votos, pretexto para, à moda Donald Trump, contestar a possível derrota no segundo turno. Sem falar na força-tarefa de desqualificação das pesquisas eleitorais.

É ataque à democracia a ameaça de interferência no Judiciário via aprovação de lei para aumentar de 11 para 15 o total de ministros, o que permitiria ao autocrata em construção a indicação de seis ministros para o Supremo Tribunal Federal (STF). Na hipótese de aprovação da lei, viriam quatro novos nomes, além dos substitutos de Rosa Weber e Ricardo Lewandowski, que alcançarão a idade-limite, 75 anos, em 2023.

A democracia sai ferida quando instituições de Estado são aparelhadas ou desidratadas em favor de interesse pessoal ou político-partidário do mandatário e aliados. Sobram denúncias de interferência do governo Bolsonaro na PF, na PGR, na Petrobras, no Ibama, nos ministérios da Educação e da Saúde, no Inep, entre outros órgãos públicos.

Também violenta-se a democracia quando a liberdade religiosa é ameaçada. Durante a campanha eleitoral, a mulher do presidente, Michelle Bolsonaro, assumiu protagonismo político ao tratar o presidente como um escolhido de Deus, ao demonizar o principal adversário do marido, o ex-presidente Lula, e ao compartilhar conteúdo de perseguição às religiões de matriz africana. Aliados de Jair Bolsonaro, além do próprio presidente, chegaram a dizer que não é cristão quem vota na esquerda ou deixa de votar no candidato do PL.

O presidente tentou se apropriar do Círio de Nazaré, numa tentativa de avançar entre eleitores católicos. E patrocinou uma inédita e malvista ocupação da Basílica de Nossa Senhora Aparecida no feriado dedicado à padroeira do Brasil. Obrigou o padre Camilo Júnior a se pronunciar em plena cerimônia de consagração solene:

— Hoje não é dia de pedir voto, é dia de pedir bênção.

Baderna em templos, mulheres e homens constrangidos na fé em nome da política são evidentes violações à liberdade de credo num Estado laico.

A democracia está em risco se agentes do Estado atuam para cercear direitos sexuais e reprodutivos de meninas e mulheres. Bolsonaristas fizeram isso quando agiram para impedir o acesso de meninas estupradas ao aborto legal no Espírito Santo, em Santa Catarina, no Piauí.

Afronta o direito fundamental à igualdade o candidato a governador que profere insinuação homofóbica contra o adversário. Foi o que fez o ex-ministro Onyx Lorenzoni, bolsonarista, na propaganda eleitoral no Rio Grande do Sul em relação ao tucano Eduardo Leite:

— Os gaúchos e as gaúchas entenderam que vão ter, se for da vontade de Deus e do povo gaúcho, um governador e uma primeira-dama de verdade.

Leite assumiu a homossexualidade um ano e meio atrás numa entrevista a Pedro Bial.

Agride a Constituição o parlamentar que, no plenário da Câmara dos Deputados, reverencia um torturador, como já fez Jair Bolsonaro em 2016. Um ano antes, ele justificara a desigualdade salarial de gênero, porque mulheres engravidam e têm direito a benefícios trabalhistas por isso. Tanto como candidato quanto como presidente desumanizou homens negros ao referir-se ao peso em arrobas de quilombolas e de um apoiador. Bolsonaro foi denunciado pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) ao Tribunal Penal Internacional por genocídio. Não é democracia se a população nativa é abandonada à própria sorte ou se decisões do governante atentam contra ela. Ou se favelas são criminalizadas, como o Complexo do Alemão, quando abrigam ato político tão bem-vindo quanto necessário.

Tampouco há democracia se uma comemoração de aniversário termina em assassinato, porque o tema da festa eram Lula e o PT. Aconteceu em Foz do Iguaçu (PR), onde o petista Marcelo Arruda foi morto a tiros pelo bolsonarista Jorge Guaranho. Parlamentares trans sofrem ataques e ameaças, com prejuízos ao exercício do mandato, caso de Benny Briolly, vereadora em Niterói (RJ). A violência política elegeu um governador, um deputado federal e um estadual no Rio de Janeiro em 2018. A flexibilização do acesso a armas de fogo e munição, como viabilizadas pelo presidente em 42 atos executivos, ameaça os brasileiros. A ponto de o TSE ter proibido circulação de armamento por caçadores, atiradores e colecionadores da véspera ao dia seguinte às eleições.

Há inúmeras formas de golpear a democracia. O bolsonarismo recorre a todas.