Valor Econômico, v. 20, n. 4962, 18/03/2020. Opinião, p. A12

Um plano de emergência para a crise do coronavírus

Eduardo Fleury


O avanço da contaminação pelo coronavírus tem impacto imediato na saúde da população mundial. No entanto, a consequência sobre a economia pode também ser substancial, o exemplo das bolsas de valores na última semana é ilustrativo. O tamanho do impacto nos negócios depende do tempo necessário para controlar a pandemia. Segundo estimativa do ministro da Saúde passaremos por “20 semanas duras”. Outros especialistas falam em prazo maior ainda. Isso implica que teremos, durante boa parte deste ano, empresas buscando meios para pagar contas e cumprir compromissos com clientes, fornecedores e empregados.

Visando levantar a discussão sobre as ferramentas necessárias para combater a crise econômica decorrente do coronavírus, propomos neste artigo medidas de caráter jurídico e fiscal.

Do ponto de vista macroeconômico, teremos um choque de oferta originado por pelo menos dois motivos. As linhas de produção serão afetadas pela falta de insumos e muitas fábricas terão de reduzir a produção para evitar a contaminação. Haverá também choque de demanda, pela redução dos gastos de empresas e consumidores.

O impacto da crise na economia real funciona de forma semelhante à contaminação do vírus. De início, o impacto é localizado, mas com o tempo os efeitos vão se espalhando pelo restante da economia. Atividades tais como restaurantes, turismo, eventos artísticos e esportivos, educação e hotelaria são atingidas de imediato. O isolamento voluntário ou forçado também já impacta os negócios.

Na medida em que estes setores deixam de vender (alguns são obrigados a ressarcir consumidores), o capital de giro é consumido com pagamento de obrigações - dentre estas a folha de salários. Os setores atingidos irão cortar gastos ao máximo, reduzir a zero os investimentos e, provavelmente, começar a demitir funcionários. O fluxo de pagamentos será reduzido e a crise se espalhará pelo resto da economia. Consumidores também tendem a reduzir substancialmente os gastos, seja pelo medo do desemprego, seja pelo simples isolamento.

A insegurança nas relações entre as empresas e entre empresas e empregados tendem a impactar mais ainda o PIB. Muitas empresas terão dificuldade de cumprir seus contratos com clientes, inclusive com o governo. Em geral, contratos e licitações preveem pesadas multas, além de outras penas (ex.: exclusão na participação de novas licitações) no caso de não cumprimento das obrigações contratuais.

Os sistemas jurídicos em geral não estão preparados para lidar com pandemias e situações tão extremas. Os códigos contêm dispositivos aplicáveis às excepcionalidades; porém, quando os problemas jurídicos se alastram, tais cláusulas têm pouca serventia. No caso de contratos, por exemplo, o contratado que não fornece o bem ou serviço não será responsável pelos prejuízos causados em razão de força maior, isto é, quando acontecimentos que fujam ao controle da empresa impeçam o cumprimento do contrato. Embora a pandemia do coronavírus possa se encaixar nesta definição, a aplicação deste dispositivo depende de interpretação e, em boa parte das vezes, os casos são decididos nos tribunais. Da mesma forma, cláusulas que preveem o reequilíbrio do contrato dependem de decisão judicial.

Na área trabalhista, a redução de jornada de trabalho com redução de salários depende de acordo com o sindicato. A suspensão do contrato de trabalho, que não é uma saída ideal, implica em gastos por parte da empresa e depende de convenção ou acordo coletivo. Até mesmo o trabalho em home office depende de aditivo contratual e que o empregado concorde com a medida.

Desta forma, medidas jurídicas emergenciais devem ser aprovadas pelo Congresso, para que as relações econômicas sejam menos afetadas pela insegurança. Inicialmente, as medidas devem flexibilizar o cumprimento dos contratos. A pandemia do coronavírus deveria, em certas circunstâncias, ser considerada por definição como motivo de força maior e as consequências contratuais previstas em lei.

Nas relações trabalhistas, a flexibilização deve ser temporária, mas deve permitir agilidade sem longas negociações com sindicatos. A redução da jornada de trabalho com redução proporcional dos salários pode ser fundamental para a sobrevivência de empresas de médio e pequeno porte. Um limite máximo de redução de 40%, por exemplo, poderia ser estabelecido.

O pagamento dos impostos é parte importante da equação para dar fôlego às empresas. A melhor forma de tratar este problema é conceder parcelamento dos impostos sem juros. O número de parcelas será calibrado de acordo com o faturamento da empresa: quanto maior a queda nas vendas, maior será o número de parcelas. Estas informações estão facilmente disponíveis às autoridades tributárias. Propostas como as apresentadas pelo Governo para “diferir” por três meses o pagamento de parcelas dos encargos sobre folhas (ex.:FGTS) são muito tímidas. Se as empresas não têm dinheiro hoje, não vão ter em três meses. Adicionalmente, seria fundamental suspender o pagamento dos parcelamentos já em andamento. Caso contrário, uma onda de inadimplência vai se espalhar, fazendo com que muitos contribuintes sejam excluídos destes parcelamentos e inviabilizando muitas empresas no curto prazo.

Além disso, linhas de créditos devem ser criadas para atender as empresas em dificuldades. Os créditos devem estar disponíveis ao empresário de forma fácil e simples. As linhas de crédito existentes para investimento (ex.: Finame) devem ser redirecionadas para financiar capital de giro, devendo ser criado um limite de empréstimo por empresa, tal como 20% do faturamento.

As duas últimas sugestões deste texto implicam em aumentar o déficit público. Estamos diante da perspectiva de uma crise econômica muito grave. Exceto se o prazo para controlar o vírus for curto, teremos um ano de muitas dificuldades. A teoria keynesiana, já testada com sucesso nas duas grandes crises mundiais, não deixa dúvidas de que a atuação do governo é necessária. Só que desta vez não se trata de estimular a demanda pura, até porque o aparato produtivo tem dificuldade em responder. O déficit público será gerado mais pelo lado da redução da arrecadação e subsídio de linhas de crédito.

A política monetária terá pouco efeito para estimular a economia, não só pelo excesso de liquidez que já existe na economia, mas pela dificuldade dos bancos em levar esta liquidez para aqueles que necessitam. Tal como em 2008, os bancos tendem a reter a liquidez liberada pelas autoridades monetárias, não repassando os recursos. Trata-se de um comportamento esperado. As linhas de crédito devem ser risco do governo e não dos bancos.

O Congresso deve agir rapidamente, levantando o limite constitucional do teto dos gastos temporariamente e permitindo que a União financie Estados e Municípios quando necessário. Da mesma forma, deve-se aprovar leis que flexibilizem as normas contratuais, trabalhistas ou de outra natureza e que facilitem a acomodação de empresas, trabalhadores e consumidores.

Eduardo Fleury é economista e tributarista, sócio e head da área tributária de FCR Law, mestre e doutorando (S.J.D.) em Tributação pela Florida University (EUA), especialista em International Tax Planning pela Leiden University (Holanda), e em Direito de Empresas Americano pela Harvard Extension School.