Valor Econômico, v. 20, n. 4962, 18/03/2020. Opinião, p. A13
A emergência econômica do coronavírus
Martin Wolf
A pandemia não foi inesperada. Mas a realidade sempre difere das expectativas. Ela não é apenas uma ameaça à saúde pública. Também pode representar uma ameaça econômica maior do que a da crise financeira de 2008 e 2009. Lidar com ela vai exigir uma liderança forte e inteligente. Os bancos centrais proporcionaram um bom começo. O ônus agora recai sobre os governos. Não há outra situação que demonstre melhor por que é tão vital para a população ter um Estado administrativo de qualidade, comandado por pessoas capazes de diferenciar especialistas de charlatães.
Uma questão central é quanto vai durar e qual vai ser a profundidade da emergência de saúde pública. Uma esperança é que o confinamento das populações em países (como na Espanha) ou em parte de países (como na China) elimine o vírus. No entanto, mesmo se isso der certo em alguns lugares, claramente não acontecerá em todos os lugares. Um extremo oposto é que até 80% da população mundial possa se infectar. A uma possível taxa de mortalidade de 1%, isso poderia significar 60 milhões de mortes, o equivalente à Segunda Guerra Mundial. Essa calamidade provavelmente também levaria tempo: a gripe espanhola de 1918 veio em três ondas, ao longo de um ano. É mais provável, contudo, que o desfecho acabe sendo nem totalmente de uma forma nem de outra: a taxa de mortalidade será menor, mas a doença não desaparecerá.
Se esse for o caso, o mundo poderia não voltar ao comportamento pré-crise até bem depois do começo de 2021. As pessoas mais jovens poderiam começar antes a se comportar normalmente. Mas os mais velhos, não. Além disso, mesmo se alguns países eliminassem a doença, as quarentenas seriam mantidas contra outros países. Em resumo, o impacto do coronavírus provavelmente será severo e prolongado. As autoridades econômicas precisam se planejar, no mínimo, com base nisso.
A pandemia já pressionou tanto a oferta quanto a demanda. Os confinamentos interrompem suprimentos essenciais e uma ampla faixa de gastos, em especial nos setores de entretenimento e viagens. O resultado vai ser uma forte queda na atividade no primeiro semestre deste ano.
Acima de tudo, paira a ameaça de depressão. Muitas famílias e empresas provavelmente vão ficar sem dinheiro em breve. Mesmo em países mais ricos, uma grande proporção da população praticamente não tem dinheiro guardado. O setor privado - principalmente empresas de áreas não financeiras - também se empanturrou de dívidas.
A demanda dos consumidores, portanto, vai se enfraquecer ainda mais. Empresas vão quebrar. As pessoas vão se recusar a vender a empresas consideradas em vias de quebrar, a menos que possam receber antecipado. Dúvidas sobre o estado do sistema financeiro vão ressurgir.
Há o risco de um colapso na demanda e na atividade econômica que vai muito além do impacto direto da emergência de saúde pública.
Também vai ser particularmente difícil conter a disseminação da doença em países com seguro social limitado e controles sociais insuficientes. Isso vai afetar, acima de tudo, os EUA: muitas pessoas doentes vão se recusar a ir ao hospital e também vão se ver obrigadas a trabalhar. O seguro social é eficiente.
Como instituições de crédito de última instância, os bancos centrais precisam assegurar a liquidez, mantendo o custo dos empréstimos baixo e financiando a oferta de crédito, tanto direta quanto indiretamente. Mas os bancos centrais não podem prover solvência. Eles não podem sustentar a renda familiar ou dar às empresas um seguro contra tal colapso na demanda. Os governos, como captadores e gastadores de última instância, podem e devem fazê-lo.
Os títulos de dívida governamentais de longo prazo estão tão baratos que os governos não precisam ter medo em fazê-lo: Alemanha, Japão, França e Reino Unido agora são capazes de captar por 30 anos a uma taxa nominal de menos de 1%, o Canadá, a 1,3%, e os Estados Unidos, a 1,4%.
É, portanto, uma crise de tempo limitado, com consequências para a economia e a saúde pública que os governos precisam administrar. Domesticamente, o mínimo possível a ser feito é oferecer pagamentos generosos de seguro-desemprego e de licença remunerada por motivo de saúde, inclusive para trabalhadores autônomos, durante o período da crise. Se isso for demasiado difícil, os governos simplesmente podem mandar um cheque para cada um.
No entanto, mesmo isso não vai ser suficiente para que se consiga evitar os custos das concordatas em massa e de uma depressão. Emmanuel Saez e Gabriel Zucman, de Berkeley, argumentam que: “A forma mais direta de prover [...] seguro é ter um governo atuando como comprador de última instância. Se o governo substituir totalmente a demanda que se evapora, cada empresa pode continuar pagando seus trabalhadores e mantendo seu estoque de capital, como se estivesse operando [...] normalmente. ” Anatole Kaletsky, da Gavekal, recomenda uma reação similar.
Fornecer tal auxílio não criará risco moral. Ser ajudado ao longo de uma pandemia do tipo que aparece uma vez a cada cem anos dificilmente encorajaria uma irresponsabilidade cabal. Se as empresas captaram demasiado crédito, ainda assim, no fim das contas, vão quebrar.
O plano é muito melhor do que oferecer créditos e garantias de crédito, como proposto pelo governo alemão. As empresas vão captar créditos apenas para garantir sua sobrevivência ao longo da crise, não necessariamente para pagar seus funcionários. Além disso, os créditos vão precisar ser pagos, criando um fardo quando a pandemia se extinguir. Já pela outra proposta, os pagamentos podem ser condicionados à manutenção do emprego. O programa também se encerraria naturalmente, juntamente com a própria pandemia. Os governos, então, poderiam aplicar impostos adicionais para recuperar os gastos.
É essencial manter a renda e minimizar o custo de longo prazo das empresas em má situação. Além disso, dentro da região do euro vai ser essencial ajudar os governos cuja capacidade de captação esteja limitada. Mundialmente, os países emergentes mais vulneráveis também vão precisar de ajuda para gerenciar a crise econômica e a de saúde pública. Será vital, também, voltar atrás no nacionalismo de soma zero das políticas de hoje, que vão dificultar a reconstrução de uma ordem mundial saudável e cooperativa.
A pandemia também deverá passar. Mas não será amanhã. A pandemia ameaça provocar uma depressão. Salus rei publicae suprema lex (a segurança da república é a lei suprema). Na guerra, os governos gastam livremente. Agora, também, precisam mobilizar seus recursos para evitar um desastre. Pensem grande. Atuem agora. Juntos. (Tradução de Sabino Ahumada).
Martin Wolf é o principal comentarista econômico do Financial Times.