Correio Braziliense, n. 21777, 31/10/2022. Política, p. 5

Eleição apertada, país dividido

Vinicius Doria


A eleição mais violenta e polarizada da história do país chega ao fim e expõe em números frios a divisão profunda de um país que não sabe ainda o caminho da reconciliação. Levará algum tempo para que vencedores e derrotados metabolizem o resultado das urnas em favor de um futuro mais fraterno. A estreita margem de votos que assegurou a Luiz Inácio Lula da Silva (PT) um terceiro mandato é o retrato dessa cisão. Pouco mais de dois milhões de votos o separaram de Jair Bolsonaro (PL), o primeiro incumbente a perder uma disputa pela reeleição ao cargo de presidente da República. Mesmo assim, o chefe do Executivo sai da contenda com o apoio de 58,2 milhões de pessoas, 49,1% do eleitorado. Mas a vitória do petista, ontem, já estava prevista com razoável grau de confiabilidade desde o fim do primeiro turno.

O resultado do primeiro turno apontou para as duas campanhas quais eram os desafios que cada uma teria de enfrentar. Faltaram a Lula cerca de 1,8 milhão de votos para vencer na rodada inicial. Bolsonaro chegou em segundo lugar com uma diferença de pouco mais de seis milhões de votos para o adversário. Estava dada, em números, a meta de cada um. O presidente, para se reeleger, precisaria ganhar quatro de cada cinco votos ainda disponíveis na prateleira do eleitorado para virar o placar. Para Lula, a tarefa era bem mais fácil.

No segundo turno, o ex-presidente jogou para não errar. E conseguiu incorporar à sua candidatura uma constelação de nomes da centro-esquerda à centro-direita — incluindo adversários do primeiro turno, como Simone Tebet (MDB) e o PDT de Ciro Gomes —, além de lideranças da sociedade civil, influenciadores digitais, artistas e intelectuais, que deu densidade ao conceito de frente ampla pela democracia.

Bolsonaro também se movimentou no lado direito do espectro político e angariou apoios de políticos eleitos na onda do bolsonarismo (ou do antipetismo), como os governadores reeleitos de Minas Gerais, Romeu Zema, e do Rio de Janeiro, Cláudio Castro, detentores de uma máquina azeitada e influente em dois dos três maiores colégios eleitorais do país.

Foi na campanha do segundo turno que Lula apareceu em sua melhor forma: retomou os comícios de rua e as caminhadas com militantes para catalisar o que o PT tem de mais poderoso, que é a mobilização popular. A estratégia rendeu as melhores imagens para a propaganda eleitoral e alimentou as redes sociais, até então dominadas pela máquina bolsonarista comandada pelo filho 03 do presidente, o vereador Carlos Bolsonaro. Para esse enfrentamento no ringue digital, Lula também contou com o reforço de dois influenciadores que ajudaram a mudar o jogo, o deputado André Janones (Avante-MG) e Felipe Neto.

 

Nomes influentes

Nos bastidores, o núcleo duro do PT deu lugar ao candidato a vice, Geraldo Alckmin, e a nomes influentes da política e da economia, que tinham a missão de mostrar que a candidatura de Lula era maior do que a frente de esquerda que disputou o primeiro turno. Uma das primeiras e mais comemoradas adesões foi da senadora Simone Tebet, que assumiu um protagonismo poucas vezes visto em campanhas petistas. 

Os votos que a senadora conseguiu transferir para o petista foram fundamentais para a vitória de ontem. Assim como a captura de parte do eleitorado de Ciro Gomes, que, mesmo ressentido, engoliu a orientação do partido dele, o PDT, de apoiar a chapa Lula-Alckmin.

Segundo levantamentos feitos pela equipe de campanha de Lula, os votos dos dois candidatos derrotados em 2 de outubro já seriam suficientes para ele atingir a marca de 1,8 milhão de votos que o separaram da vitória no primeiro turno. No cômputo geral, o ex-presidente amealhou 3,1 milhões de votos a mais do que obteve na primeira ronda, ou 1,1 milhão de votos a mais do que precisava para ultrapassar a marca de 50% dos votos válidos (59,2 milhões).

Um dado relevante dessa apuração foi o número de abstenções, que derrubou uma série histórica que parecia consolidada como tendência. Neste ano, caiu de 21% no primeiro turno para 20,6% no segundo.

Além da polarização, a oferta de transporte público gratuito na maioria das grandes e médias cidades brasileiras também contribuiu para estimular o eleitor a ir às urnas.

Bolsonaro chegou perto da vitória. Bem perto. Conseguiu reduzir a diferença para Lula de 6,1 milhões de votos no primeiro turno para apenas 2,1 milhões de votos no segundo. Mas a um preço nunca visto na história do país, com o uso intensivo da máquina do Estado para angariar apoios e votos.

Ainda na pré-campanha de primeiro turno, o governo aprovou um pacote de bondades com dinheiro público, sem lastro no Orçamento, voltado para a população mais pobre, como o aumento do Auxílio Brasil para R$ 600 e benefícios como o vale-gás. Também usou o Congresso e a Petrobras para segurar artificialmente os preços dos combustíveis. O mercado estima que o rombo orçamentário fique entre R$ 200 bilhões e R$ 400 bilhões, uma conta que cairá no colo do próximo presidente.

A estratégia do Palácio do Planalto de abrir o cofre, comandada pelo ministro da Casa Civil, Ciro Nogueira (PP-PI), quase deu resultado. Junto com os bons números da economia na área da geração de emprego e no controle da inflação (já são três meses de deflação seguidos), que impactam diretamente na vida das pessoas, Bolsonaro escalou nas pesquisas, mas não na velocidade e na intensidade desejadas.

No fechamento da conta, Bolsonaro agregou 7,1 milhões de votos no segundo turno em relação ao primeiro, apesar de toda uma onda de notícias negativas no período, como a frase infeliz dele sobre adolescentes venezuelanas (“pintou um clima”), declarações desastrosas do ministro da Economia, Paulo Guedes (“roubamos menos que eles”), e cenas assustadoras envolvendo aliados, como o ataque de Roberto Jefferson a agentes da Polícia Federal e a perseguição da deputada bolsonarista Carla Zambelli, armada, a um homem negro que a teria “provocado” em São Paulo. Nada disso colou em Bolsonaro.

 

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