O Globo, n. 32577, 16/10/2022. Política, p. 4

'O altar é 22'

Eduardo Gonçalves


Às 19h40m do último domingo, cerca de mil pessoas acompanhavam o culto na Igreja Universal do Reino de Deus do bairro de Pituba, um dos maiores templos evangélicos de Salvador. De pé no púlpito, o pastor Leonardo Costa alternava pedidos de votos para o presidente Jair Bolsonaro (PL) e o candidato a governador da Bahia ACM Neto (União) com uma pregação apelando para os fiéis combaterem quem “quer fazer o diabo entrar na família” e obedecerem “o altar”. Sobre sua cabeça, um telão exibia slides. Um deles alertava sobre os supostos riscos de um projeto de lei “da esquerda” que, segundo a falsa versão do líder religioso, legalizará o incesto caso seja aprovado no Congresso:

— Aí vai o teu marido e fala assim: ‘Eu vou casar com a nossa neném de 4 anos e já vou começar a ter sexo com ela agora’. Nós estamos pedindo a você: vote contra isso aqui, vote contra essa lei — alardeava o pastor diante da plateia que reagia com espanto e gritos de “o sangue de Jesus tem poder”.

— E quem é o altar? O altar é 44 (número de ACM). O altar é 22 (Bolsonaro) — afirmava o líder religioso.

Procurada, a Igreja Universal do Reino de Deus disse em nota que promove “a conscientização de seus membros sobre a importância da escolha de candidatos com valores cristãos” e que orienta os seus bispos e pastores a sempre cumprirem as leis.

O episódio ocorrido em Salvador revela a trincheira escolhida pelo bolsonarismo para penetrar na barreira petista e conquistar votos no Nordeste. A região aplicou ao presidente a maior derrota que sofreu no primeiro turno: o mandatário somou 26,8% dos votos contra 67% do seu principal oponente, Luiz Inácio Lula da Silva (PT) . A estratégia colocada em prática pelo candidato do PL para reverter esse placar desfavorável é perceptível em quatro estados — Bahia, Alagoas, Pernambuco e Piauí — percorridos ao longo de uma semana pela reportagem do GLOBO.

Esse plano de contra-ataque no Nordeste começou a ser traçado quatro dias após o primeiro turno numa série de reuniões entre o presidente e seus aliados no Palácio da Alvorada, em Brasília. A ordem era clara: intensificar a campanha nas igrejas evangélicas, segmento em que Bolsonaro já tem maioria, mas, na avaliação dos seus estrategistas, encontra margem para crescer e furar a bolha lulista na região. O pastor e deputado federal reeleito Alex Santana (Republicanos-BA) foi um dos convocados para essa missão. No domingo passado, ele comandava o culto na sede da Assembleia de Deus em Salvador. Com microfone em punho, o parlamentar agradecia os votos recebidos e contava o que ouvira:

— Na segunda-feira, recebi uma ligação do presidente da República. Na terça, estivemos em Brasília para pedirmos oração às nossas igrejas e aos irmãos. É importante que, além de orarmos pela vida do presidente, nos preocupemos em convencer familiares e amigos da necessidade de mantermos o presidente.

Tripé de atuação

A operação arquitetada pela campanha de Bolsonaro para conquistar votos no Nordeste é sustentada por três frentes de atuação. A primeira envolve utilizar a rede de templos evangélicos para difundir uma pregação política a favor da reeleição do presidente. As outras duas miram especificamente em mulheres e jovens cristãos. Para arrebanhar esses dois públicos, foram escalados a primeira-dama, Michelle Bolsonaro, e o vereador de Belo Horizonte Nikolas Ferreira (PL), de 26 anos, que foi o deputado federal mais votado do Brasil em 2022. Nos próximos dias, Nikolas deverá percorrer ao lado do pastor influencer Guilherme Batista cidades como Aracaju, Maceió, Recife e João Pessoa. Já Michelle iniciou um tour na mesma região na companhia da ex-ministra e pastora Damares Alves.

Na sexta-feira, a primeira-dama desembarcou em Teresina, capital do Piauí, onde participou de um evento com mulheres. Cumprindo à risca um dos papéis aos quais foi designada, ela tentou suavizar a imagem de Bolsonaro, rejeitado por mais da metade do eleitorado feminino, de acordo com a última pesquisa do Datafolha. Ao discursar, Michelle classificou o marido como um homem “regido por valores cristãos” e que “sempre teve muito carinho pelo povo nordestino” — o presidente já se referiu a eles como “cabeça chata” e “pau de arara”. Em outro momento de sua fala, ela partiu para o ataque e lançou mão do discurso religioso para demonizar adversários políticos.

— É por uma ideologia do bem contra o mal, da luz contra esse partido das trevas, que só rouba e destrói. Cada um aqui tem um parente e um amigo que não está enxergando o que estamos passando. Meus amados, orem, rezem, intercedam por eles.

A primeira-dama tem utilizado a sua penetração no público evangélico para difundir pregações políticas. Em agosto, ela compartilhou em suas redes sociais uma gravação antiga de Lula recebendo banho de pipoca como oferenda aos orixás da umbanda, em Salvador. A investida surtiu efeito. O vendedor Luciano de Melo, 45 anos, evangélico da igreja Casa da Promessa, em Maceió (AL), diz que votará em Bolsonaro, porque Lula é “macumbeiro” e “tem pacto com os demônios”, entre outras razões.

— Vi uns vídeos dele (Lula) participando de terreiros e oferendas — diz Luciano, referindo-se à publicação da primeira-dama.

Em outra ofensiva anti-Lula, o deputado federal eleito capitão Alden (PL-BA) postou em seu perfil do Instagram um panfleto que sustenta que o petista é favorável ao “assassinato de bebês”, por meio do aborto, e da tributação de igrejas, que, segundo o texto, pode provocar o fechamento de templos.

— É necessário que os evangélicos falem de política hoje para não serem proibidos de falar de Deus amanhã — justifica Alden.

Fake news

A estratégia de parte da tropa bolsonarista de vincular o ex-presidente a práticas condenadas pelos cristãos inclui também a disseminação de fake news. Na semana passada, passou a circular um panfleto apócrifo entre bolsonaristas e evangélicos do Nordeste listando motivos para os fiéis não votarem em Lula. De acordo com a cartilha, o petista é contra igrejas, tem “aliados satanistas” e “quer tirar a inocência” das crianças com ideologia de gênero. “Votar em Lula é ficar do lado de quem defende o banheiro multigênero. Imagine um homem usando o mesmo banheiro que sua filha. Isso não pode acontecer!”, diz o folheto.

Em sua passagem por Teresina ontem, Bolsonaro amplificou esse discurso para desconstruir o seu adversário:

— Ô Lula, os pais não querem na escola banheiro unissex. Não querem liberação das drogas para os seus filhos, seu bandido ladrão. Nós não queremos aborto no Brasil — disse o presidente, que completou que o brasileiro precisa decidir se “quer um futuro com religião e liberdade” ou não.

Desde o início do segundo turno, esse tipo de pregação se intensificou. Ao discursar na semana passada num culto em Goiânia, em Goiás, Damares disse que obteve informações de que crianças traficadas da Ilha de Marajó, no Pará, tinham seus dentes arrancados para que fizessem sexo oral. O episódio rendeu críticas e desgaste à campanha do presidente. O Ministério Público Federal cobrou explicações do governo federal.

Frequentador da Igreja Quadrangular em Salvador há uma década, o mecânico Leandro Cardoso, de 38 anos, diz nunca ter visto tantas pregações políticas no púlpito como agora. Depois de ter votado no PT nos últimos pleitos, ele decidiu migrar para Bolsonaro no primeiro turno:

— Bolsonaro fala muita besteira, mas não é o culpado de todos os problemas. Eu não vou votar em alguém que foi julgado, condenado e preso — disse, referindo-se a Lula, mas indicando que pode se abster por causa das horas que passou na fila para votar no primeiro turno. — Eu não vou perder o meu tempo enquanto esses dois ficam brigando.