Título: No país do faz-de-conta
Autor: Renan Calheiros
Fonte: Jornal do Brasil, 23/10/2005, País, p. A5

Emília, a boneca de pano dos livros de Monteiro Lobato, tinha uma arma infalível à qual só recorria em casos extremos: o faz-de-conta. Décadas se passaram, mas faz-de-conta teve futuro brilhante: virou instituição nacional... Faz-de-conta que temos a legislação trabalhista mais avançada do mundo! Resultado: os encargos dobram as despesas salariais do setor formal e uma massa de brasileiros fica condenada à informalidade, sem direito trabalhista. Faz-de-conta que temos um Estatuto do Menor democraticíssimo! Impede que um pivetão de 17 anos, ao matar, seja tratado como assassino. Não nos priva, no entanto, de termos esse contingente imenso de crianças pobres, explorados nas ruas, ou depositados nessas instituições que fazem-de-conta que não são prisões. Faz-de-conta que somos um país de legislação penal pra lá de moderna! Pune o assassinato com penas retráteis, fazendo-de-conta que a curta temporada trás grades levará à regeneração.

Faz-de-conta que estamos desarmando o Brasil! Numa mobilização global do Iapoque ao Chuí, embalada por atores e famosos, personalidades angelicais, palpiteiros formadoras de opinião e governantes clarividentes, como Rosinha ou Lula, vamos assentar golpe decisivo na violência proibindo seu Joaquim, aquele sujeito nervoso, que comprou, a uns 15 anos, aquele Taurus 32, na Mesbla, de adquirir mais munição para o dito cujo. Como ele só poderá ficar com seus velhos cartuchos de pré-plebiscito, diminuirá o risco de vir a dar um tiro no vizinho, que arranhou seu carro dele na garagem, com munição nova. Sobretudo, cairá o risco do tal Taurus 32, da Mesbla, caso venha a ser furtado, reforçar o arsenal do crime, com munição nova! Não resta dúvida, isso contribuirá substancialmente para desarmar a sociedade e coibir a violência, e particularmente, na Linha Vermelha, na Av Brasil, na Maré, no Complexo do Alemão...

Falando sério: esse plebiscito que obriga milhões de brasileiros irem às urnas trata, apenas, da proibição da venda legal das armas e munições, hoje permitidas, no futuro. Quando se vive numa cidade em que os bandidos quebraram o monopólio das Forças Armadas, controlam territórios e exercem a intimidação e a pena de morte nos bairros e vias expressas, com suas AR 15, AK 47, Uzis, granadas defensivas, a futura vedação de seu Joaquim comprar cartuchos ou do seu filho, hoje de-menor, vir a adquirir, ele também, seu revólver, não tem a menor importância. Perdoem-me, companheiros. É apenas mais uma enganação.

E não me venham com isso de que as armas legais abastecem o crime, por roubo. A eventual vitória do ''sim'' não retirará das pessoas aquelas armas que já possuem hoje, legalmente, e que continuarão a ser roubadas, eventualmente. Mas esse próprio argumento-mor do ''sim'' é furado na sua essência: alguém duvida que qualquer assaltante seja capaz de obter sua arma no mercado informal? O plebiscito, até agora, apenas conseguiu aumentar em 200% a venda de armas, legais. Imaginem das ilegais! Eventualmente vitorioso o ''sim'', esse comércio de armas, clandestino, explodirá, como a corrupção policial, como novo filão de achacamento.

Politicamente, o plebiscito é um favor prestado à direita, que com o ''não'' passou a ter uma bandeira popular, à la norte-americana, que nunca d'antes tivera apelo algum no Brasil: a posse de armamento como direito de cidadania! Não concordo com essa abordagem nem com a falácia do argumento do ''não'' comparando a relação entre posse de armas e homicídios, entre EUA e Brasil. Deveriam comparar os EUA com a Europa, que restringe acesso a armamento. Sou plenamente favorável ao desarmamento, mas àquele a sério: primeiro os bandidos, depois o filho de seu Joaquim...

Rejeito esse plebiscito. É um erro político crasso, uma patuscada com a cara do governo Lula. Repilo seus termos, sua polarização enganadora, desassociada dos problemas reais de violência que assolam o país e que teriam que começar a ser enfrentados pela reforma das polícias, das prisões e pelo desarmamento, em primeiro lugar, dos bandidos.

Obrigado a comparecer ao faz-de-conta, votarei nulo.