Título: Voto Sim: uma chance histórica
Autor: Renan Calheiros
Fonte: Jornal do Brasil, 23/10/2005, País, p. A5

Um dia para entrar na História do Brasil. Mais de 120 milhões de brasileiros vão ter, na ponta do dedo, a chance de escolher se querem um país menos violento, ou um país que continue como um dos recordistas em mortes por armas de fogo no mundo todo. Um país que passe a cultivar uma cultura de paz ou onde o medo e a insegurança acabem gerando um ciclo vicioso, com o aumento do número de armas em poder da população, alimentando a criminalidade e gerando cada vez mais vítimas. Vítimas de assassinatos tão estúpidos quanto o do paulista morto na semana passada numa briga de torcidas, depois de um jogo de futebol. Ou do estudante de 15 anos atingido por um tiro acidental quando um colega de escola mostrava um revólver que levava na mochila. Por trás de ambas as mortes, não havia qualquer bandido, nem armas contrabandeadas.

As duas notícias, que ganharam as primeiras páginas dos jornais, não deixam dúvida: o comércio legal de armas só aumenta a escalada de violência. É impossível falar em direito à legítima defesa diante de crimes motivados por brigas de torcida, de bar ou de trânsito, conflitos domésticos ou crimes passionais. Ou por acaso um marido ciumento tem direito de matar a própria mulher, um sujeito desequilibrado tem direito de tirar a vida de alguém depois de uma discussão?

O caso do estudante morto numa escola estadual de São Paulo não é apenas uma das centenas de tragédias que tiram a vida de crianças e adolescentes curiosos ou até mesmo encantados com a arma comprada pelo próprio pai, pelo pai de um colega, por um vizinho. O acidente ilustra pesquisa feita recentemente pela Unesco com dez mil alunos em cinco capitais brasileiras: 12% dos nossos estudantes já viram ou tiveram contato com revólveres dentro da própria escola. Em números absolutos, isso quer dizer que 205 mil alunos estiveram próximos de uma arma de fogo enquanto deveriam estar estudando.

Nossos jovens, sempre é bom lembrar, são as maiores vítimas das armas de fogo no Brasil. De cada três mortes na faixa de 15 e 24 anos, uma foi por ferimento à bala.

Na hora de votar Sim ou Não, também é preciso levar em conta a pesquisa da Secretaria de Segurança Pública do Estado do Rio de Janeiro, segundo a qual só 28% das armas apreendidas pela polícia com bandidos têm origem no contrabando. Nada mais nada menos que 72% são desviadas de cidadãos de bem ou da própria polícia ¿ 61% de pessoas físicas, sem qualquer antecedente criminal.

Essas armas, compradas teoricamente para defender o cidadão, foram usadas para matar, estuprar e roubar. A Secretaria detalha os números: armas compradas por pessoas sem antecedentes criminais em lojas regulares foram usadas em 67% dos estupros; 51% dos roubos; 38% dos homicídios; 46% dos latrocínios; e 49% das lesões.

É claro que a proibição da venda de armas de fogo não vai acabar com a violência. É óbvio que precisamos de uma política de segurança pública muito mais efetiva, que precisamos garantir maior agilidade à nossa Justiça, mudar nossa legislação penal e, acima de tudo, precisamos investir na área social para combater as raízes mais profundas da violência ¿ a miséria e a exclusão social.

A briga por mais investimentos sociais e na área de segurança é muito mais ampla. Por isso mesmo, uma de nossas preocupações foi apresentar, na última semana, uma Proposta de Emenda Constitucional estabelecendo percentuais mínimos de gastos com segurança pública: 15% para a União, 7% para os Estados e 1% para os municípios. O contingenciamento dos recursos ficaria terminantemente proibido.

A proibição do comércio de armas é um primeiro passo para que possamos caminhar rumo a um Brasil mais justo e menos violento. De qualquer forma, seja qual for o resultado do referendo de hoje, a vitória será de toda a sociedade. Afinal, a consulta popular é a maior prova da solidez e da maturidade de nossa democracia. E a possibilidade de decidir, pelo voto, questão tão importante quanto a proibição de armas faz com que cada um de nós tenha consciência de que podemos ¿ e devemos ¿ ter participação ativa nos rumos do país.