O Globo, n. 32580, 19/10/2022. Economia, p. 15

Uso até do FGTS futuro

Eliane Oliveira
Geralda Doca
Fernanda Trisotto


O governo aprovou ontem o uso do FGTS futuro — a previsão de recursos que o trabalhador com carteira assinada terá no fundo caso continue empregado — para o financiamento imobiliário. Esta é a oitava medida econômica lançada desde o início da disputado segundo turno. Muitas destas iniciativas concentram atenções na fatiado eleitorado com o qual o presidente Jair Bolsonaro (PL) tem desempenho mais fraco. Especialistas veem abusos e uso eleitoral da máquina pública.

O novo uso do FGTS será voltado, a princípio, para famílias com renda de até R$ 2.400 e tem por objetivo acelerar as contratações do programa Casa Verde e Amarela, a política habitacional do governo Bolsonaro que substituiu o Minha Casa Minha Vida. A medida entra em vigor em 90 dias e é considerada polêmica. Uma das funções do FGTS é apoiar o trabalhador em casos de demissão sem justa causa. Ao usar o recurso futuro para financiar a casa própria, ele pode ficar apenas com a multa de 40%. Um conselheiro do FGTS lembrou, em caráter reservado, que há muita rotatividade no mercado formal de trabalho nessa faixa de renda, o que pode causar problemas ao trabalhador que comprometer seu FGTS futuro.

Conta no colo do tesouro

Uma família que ganha R$ 2 mil costuma comprometer, em média, 22% da renda e assumir uma prestação de R$ 440. Com a possibilidade de empregar o FGTS futuro, poderia assumir prestação de R$ 600, considerando a contribuição de 8% para o FGTS, que resultaria em R$ 160 por mês. Além do benefício eleitoral para Bolsonaro, a medida atende a um pleito das construtoras, que estão com estoques elevados de imóveis.

Nas últimas semanas, o governo tem divulgado medidas em série, que vão desde a inclusão de mais de 500 mil famílias no Auxílio Brasil, aumento do prazo de cadastro para se habilitar a participar do programa, mais recursos para ajudas a categorias específicas, como os taxistas, além de iniciativas que contam com a Caixa, como renegociação de dívidas, crédito a mulheres empreendedoras e empréstimo consignado para beneficiários do Auxílio Brasil. Esta última ação tem sido criticada pelo risco de endividamento das famílias.

— O que se observa é o uso sistemático de todos os expedientes possíveis do governo federal pensando na reeleição. Se um prefeito usasse a máquina pública como Bolsonaro está usando o governo federal, perderia o mandato — afirma o advogado Renato Ribeiro, do Ribeiro de Almeida & Advogados Associados e especialista em Direito Eleitoral.

O economista Clemente Ganz Lúcio, do Dieese, é crítico ao uso do FGTS futuro para financiar a casa própria:

— É um mecanismo arriscado, com intuito eleitoral imediato e que não se sustenta no longo prazo, pois vai no caminho contrário ao sistema público de proteção do emprego.

Na avaliação do professor do Insper Sérgio Lazzarini, ações como esta desequilibram o processo democrático.

— Tem coisas que entram um pouco na área cinzenta e outras casuísticas. Efetivamente abriu-se um pouco a porteira. Tivemos a deterioração de alguns marcos institucionais, como o teto de gastos — afirmou, em referência à regra que limita o aumento dos gastos públicos à inflação do ano anterior, que não foi aplicada sobre as despesas com o pagamento do Auxílio Brasil de R$ 600 este ano.

Carla Beni, economista e professora de MBAs da FGV, pondera que os anúncios focam nas classes de menor renda e ajudam a impulsionar uma campanha muito baseada no uso de redes sociais e grupos de WhatsApp. Economistas mostram preocupação com o custo dessas iniciativas, que deverá recair sobre os cofres públicos no próximo ano.

— Isso acabará caindo no colo do Tesouro, cedo ou tarde, o que é uma situação realmente preocupante — disse Marcos Mendes, do Insper.

De difícil punição

Paula Bernardelli, sócia de Neisser e Bernardelli Advocacia e especialista em Direito Eleitoral, ressalta que usar a máquina pública para favorecimento eleitoral é proibido por lei, mas a punição é difícil:

— Atacar medida que favorece economicamente parcela da população pode ser facilmente lido como contrariedade ao benefício daquela população, o que pode ser fatal para qualquer candidatura.

Procurado, o Ministério da Economia não quis comentar. As pastas da Cidadania e Trabalho não retornaram até o fechamento da edição. A Caixa afirmou que as divulgações “atendem a um modelo institucional padronizado” e que no período eleitoral divulgou 140 textos informativos, sem ofender a legislação eleitoral.