Valor Econômico, v. 20, n. 4963, 19/03/2020. Opinião, p. A19

A escassez de crédito em dólar
Philip Turner


Com os mercados já em convulsão, o que ameaça a economia mundial agora é a falta de crédito em dólar. Empresas que dependem do comércio internacional têm visto o lucro desabar e muitas não vão ter condições de honrar o serviço de suas dívidas em dólar. Os bancos internacionais deparam-se com graves pressões.

O mundo tem aprendido o quanto custaram os atrasos nas medidas para conter um vírus contagioso. De forma similar, muitos dos instrumentos que os governos e bancos centrais dispõem para enfrentar as consequências econômicas desta crise de saúde pública também se tornam menos eficazes quanto mais os responsáveis hesitam em agir.

A falta de crédito que se aproximava no mundo já estava evidente mesmo antes da pandemia de covid-19. Em dezembro de 2019, um relatório da Robert Triffin International destacava que todas as métricas sobre exposição ao dólar fora dos Estados Unidos mostravam luzes vermelhas piscando. “A dívida em dólar [de empresas] não bancárias fora dos Estados Unidos está em novo recorde”, alertavam os autores, e “o descasamento de câmbio e a alavancagem no setor privado aumentaram”. “O financiamento em dólar dos bancos não americanos aparenta fragilidade”.

De fato, as dívidas em dólar de empresas não bancárias fora dos EUA agora superam os US$ 12 trilhões, ou 14% do Produto Interno Bruto (PIB), em comparação aos 10% observados em 2007, logo antes da crise financeira mundial. Além disso, os bônus em dólar emitidos por entidades não americanas, com exceção dos bancos, chegaram a quase US$ 7 trilhões, o triplo do volume de 2007. Diversas empresas fora dos EUA (inclusive na China e em outros países emergentes) vão ter dificuldades para pagar suas dívidas em dólar.

Com três meses de crise da covid-19, o comércio internacional de bens e serviços continua desestabilizado. Quanto tempo mais vai demorar até que empresas com os lucros zerados comecem a deixar de pagar sua dívida? Empresas sob pressão vão resgatar seus depósitos (considerados uma fonte estável de financiamento para os bancos) ou ativar suas linhas de crédito. Uma luta mundial das empresas em busca de liquidez em dólar vai enfraquecer o colchão de liquidez dos bancos. Os bancos poderiam se ver obrigados a reduzir o crédito e as linhas de crédito. E poderiam fazê-lo muito mais rápido do que antes da crise financeira mundial, porque as novas regras de liquidez do acordo da Basileia 3 tornaram mais fácil para os bancos revogar linhas de crédito. As instituições atingidas por uma série de concordatas contagiando-se entre fronteiras, portanto, provavelmente iriam agregar mais pressões deflacionárias à economia mundial.

Derrubar as taxas de juros não é suficiente. O acúmulo de dívidas em dólar pelas empresas é demasiado grande, e o impacto iminente sobre os lucros, demasiado forte. Da mesma forma que em 2007 e 2008, a liquidez privada está se esvaindo dos mercados. Os bancos centrais deveriam rapidamente injetar liquidez com medidas renovadas de afrouxamento monetário quantitativo (QE, na sigla em inglês) em grande escala, sinalizando mais uma vez que vão fazer “o que for preciso”.

Apenas o Federal Reserve (Fed, banco central dos EUA) pode prover a liquidez necessária em dólar em escala suficiente. O Fed fez seu dever na crise passada. Além de estabilizar os mercados de bônus nos EUA (epicentro da crise passada), ofereceu a outros grandes bancos centrais acesso ilimitado a swaps de dólar, reconhecendo, em parte, o fato de que a exposição ao dólar dos bancos europeus estava principalmente relacionada a investimentos em papéis ligados a hipotecas americanas.

Desta vez, no entanto, é diferente. Os poderes do Fed como instituição o problema da liquidez em dólar. Solucionar a crise vai exigir ações coordenadas de muitas entidades oficiais - bancos centrais, órgãos reguladores e, acima de tudo, governos.

O Fed merece crédito pelas medidas tomadas em 15 de março, e por ter guiado as ações dos outros bancos centrais. Todos os bancos centrais precisam intensificar fortemente a QE. Linhas de swap de dólar com o Fed deveriam ser usadas para assegurar que os bancos centrais possam conceder crédito em dólar livremente.

Em vista da enorme exposição em dólar dos bancos não americanos antes do choque do coronavírus, é inteiramente possível que alguns grandes bancos se deparem com a possibilidade de inadimplência em suas dívidas em dólar, se não houver assistência oficial. O Banco Central Europeu agiu certo na semana passada ao reduzir as exigências de capital e liquidez para os maiores bancos da zona do euro.

Só os governos, no entanto, são capazes de lidar com a fuga para longe dos ativos de risco durante uma pandemia como a atual. Eles apenas conseguirão evitar um colapso econômico mundial se agirem rapidamente. Um efeito cascata de calotes de empresas incapacitaria o sistema financeiro. Prover auxílio direto e imediato às empresas atingidas pela pandemia é essencial. Nesse sentido, regras fiscais e restrições ao auxílio estatal deveriam ser abrandadas, e os governos deveriam oferecer garantias parciais aos bancos que concedam créditos rapidamente a empresas em dificuldades. Em nenhum outro lugar isso é mais necessário do que na região do euro.

Os governos não deveriam se omitir em auxiliar os mercados de ações, talvez por meio dos bancos centrais. Declínios acentuados no preço das ações criam oportunidades de lucro e, além disso, mercados voláteis significam que as cotações provavelmente subiriam ainda mais fortemente diante de compras oficiais.

As autoridades pelo mundo demoraram demais para tomar medidas de contenção contra o vírus. Não deveriam repetir tal erro na política econômica. Agora, precisam concordar em agir de forma corajosa, imediata e coordenada. Podemos deixar para nos preocupar depois quanto às desvantagens das medidas emergenciais drásticas, que, de qualquer forma, seriam temporárias em sua maioria. (Tradução de Sabino Ahumada).

Philip Turner é professor visitante da Universidade da Basileia. Foi chefe-adjunto do Departamento Econômico e Monetário e membro administrativo sênior do Banco de Compensações Internacionais (BIS). Copyright: Project Syndicate, 2020.