O Globo, n. 32582, 21/10/2022. Saúde, p. 23

Risco e oportunidade

Bernardo Yoneshigue


Desde o fim de setembro, Uganda vive um surto de ebola que já deixou 44 mortos segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS). Os casos no país, no entanto, têm uma característica diferente de outros contágios recentes, como os na República Democrática do Congo, registrados mais cedo neste ano: são causados por outra variante do vírus. O principal desafio é que, enquanto a cepa mais comum conta com vacinas eficazes, a versão do vírus letal que circula agora em Uganda ainda não pode ser prevenida com imunizantes. Porém, em breve, isso pode mudar.

— A melhor forma de saber se uma vacina funciona é testá-la para prevenir a doença. Como o ebola ocorre em surtos, esse é o momento de verificar se os imunizantes em desenvolvimento são capazes de preveni-la — explica o professor do departamento de Moléstias Infecciosas e Parasitárias da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), e coordenador do Centro de Pesquisas Clínicas do Hospital das Clínicas, Esper Kallás.

Em coletiva de imprensa, o diretor-geral da OMS, Tedros Adhanom Ghebreyesus, afirmou que as duas candidatas a vacinas com estudos mais avançados para essa cepa do vírus podem começar a realizar testes clínicos em Uganda ainda este mês, como parte de um esforço internacional.

Variantes do ebola

Descoberto em 1976 no território que atualmente pertence ao Congo, o ebola é sempre recebido com alerta pela alta taxa de mortalidade —que pode chegar a 90% dos casos. Assim como os patógenos causadores da Covid-19, da varíola dos macacos e da Aids, trata-se de uma zoonose, ou seja, um vírus tradicionalmente de animais que passou para humanos.

Existem cinco tipos conhecidos do ebolavirus, microrganismo da família Filoviridae causador da doença. A espécie mais comum do agente é o Zaire ebola virus, chamado somente de vírus ebola por ser o mais prevalente. Ele é o responsável pela maioria dos surtos registrados no continente africano, e foi inclusive a causa da maior epidemia da doença já identificada, em 2014, que deixou mais de 11 mil mortos em países da África Ocidental. Na época, houve temor que os casos se espalhassem pelo planeta.

Apesar do medo, os especialistas explicam que o risco de o vírus chegar a outros continentes é considerado baixo porque é transmitido pelo contato direto com fluidos corporais, e não pelo ar, como é o caso do coronavírus. Além disso, como promove um quadro grave, o paciente é rapidamente identificado e isolado, com menos probabilidade de circular pela comunidade e disseminar o microrganismo. Por isso, embora os casos em Uganda sejam preocupantes, não devem ser encarados como um risco para o Brasil.

Em 2019, a primeira vacina contra o ebola recebeu aval no mundo: a Ervebo, desenvolvida pela farmacêutica Merck, MSD no Brasil. O imunizante foi testado na Guiné e sua aprovação foi celebrada pela OMS como “um triunfo para a saúde pública e um testemunho da colaboração sem precedentes entre dezenas de especialistas em todo o mundo”. No ano seguinte, a segunda vacina, chamada Zabdeno/ Mvabea, recebeu o sinal verde da Agência Europeia de Medicamentos (EMA), uma proteção em duas doses desenvolvida pela Janssen.

No entanto, diferentemente do coronavírus, em que as variantes do vírus têm muitas semelhanças entre si — e, por isso, conferem uma certa proteção cruzada —, as cepas do ebola são distantes geneticamente umas das outras, quase como vírus diferentes. Por isso, os dois imunizantes para o Zaire ebolavirus não são eficazes em prevenir a infecção pela variante do Sudão, responsável pelo surto atual em Uganda.

A boa notícia é que, de acordo com a OMS, existem no total seis candidatas em estágios mais avançados dos estudos. Três delas chegaram às fases 1 e 2 dos testes clínicos, o estágio em humanos composto por três etapas que avaliam, respectivamente, a segurança, a imunogenicidade (capacidade de induzir anticorpos e células de defesa) e, por fim, a eficácia real da vacina.

Desafios

Porém, o fato de os casos da variante do Sudão serem mais incomuns é justamente o que também atrasa o avanço das pesquisas. Isso porque essas etapas finais dos testes envolvem os participantes serem expostos na vida real ao vírus, o que, sem surtos da doença, acaba não acontecendo.

— Toda vacina ou medicamento precisa de um número mínimo de indivíduos para se comprovar o efeito benéfico. Os surtos e epidemias permitem que esse número mínimo, que é de dezenas, centenas, ou até milhares de pessoas, seja atingido com maior rapidez — explica o infectologista do Centro Hospitalar do Instituto Nacional de Infectologia Evandro Chagas da Fundação Oswaldo Cruz (INI/Fiocruz), Hugo Boechat.

Além da necessidade de esperar a ocorrência de surtos, os especialistas explicam outros desafios relacionados ao avanço de terapias destinadas ao ebola:

— É um desafio fazer com que a infraestrutura adequada seja estabelecida, já que a doença ocorre habitualmente em locais com recursos muito limitados. Também é importante enfrentar barreiras culturais, pois o ebola costuma estar associado a crenças e notícias conspiratórias. Além disso, algumas das regiões afetadas são zonas de conflito, o que dificulta o estabelecimento de equipes para os testes clínicos — diz Kallás.

Agora, especialistas estão correndo para aproveitar o contágio emergente em Uganda para que ao menos o avanço da doença sirva para impulsionar a avaliação dos imunizantes em desenvolvimento para a variante.

A candidata mais avançada foi desenvolvida pela farmacêutica GSK ainda em 2014, mas teve a licença posteriormente doada ao Instituto de Vacinas Sabin, em 2019.

Mas, em vez de distribuir a vacina para a população geral e, após um tempo, comparar as infecções com um grupo placebo, ela será oferecida a todos os contatos de pessoas contaminadas com o ebola — a chamada vacinação em anel. Para comparar os efeitos, um grupo receberá o imunizante imediatamente enquanto outros, um pouco depois.

A mudança é motivada por dilemas éticos, uma vez que esse público está em risco diante de uma doença letal. No surto atual de Uganda, a taxa de letalidade está em cerca de 64%.