Valor Econômico, v. 20, n. 4963, 19/03/2020. Política, p. A18

Enfrentando o impacto econômico do coronavírus

Joaquim Levy


A difusão da covid-19 criou um extraordinário risco para a economia global. A necessidade de as pessoas evitarem contato físico para reduzir o contágio significa uma abrupta queda de demanda por bens e serviços que requeiram esse contato, e uma queda na oferta em decorrência da desorganização das estruturas de trabalho, ainda difícil de medir. Esse duplo choque criará inconsistências nos fluxos de receitas das empresas e famílias, com alto risco de inadimplência e falências que podem ter sérias consequências, inclusive de longo prazo. Minimizar esses riscos deve ser a prioridade de todos os governos, subordinada apenas à proteção da vida dos cidadãos.

Proteger a vida humana, pela reclusão das pessoas, assim negando hospedeiros ao vírus e levando a cepa à extinção, deve gerar uma queda profunda, mas talvez breve da atividade econômica. A alternativa, que estaria sendo adotada pelo Reino Unido, de eliminar a cepa pela geração de imunidade na população, poderia amenizar a queda do consumo, mas estendê-la no tempo. Não sendo médico, não me cabe discutir os méritos e dificuldades das opções, inclusive com respeito a picos de demanda por serviços médicos. O objetivo aqui é alinhavar alguns caminhos que o governo pode escolher para minimizar os impactos sobre a atividade econômica.

Sendo o principal risco para a economia a suspensão de fluxos de pagamentos entre agentes econômicos pela redução do consumo, comércio e possibilidades de trabalho, o Banco Central terá que tomar medidas drásticas para aliviar as restrições financeiras das empresas, apoiando os bancos na medida em que se verificar uma deterioração das suas carteiras de empréstimos. O BNDES também pode ajudar, ainda que tenha que estar atento para distinguir situações de liquidez e solvência.

A provisão de liquidez para as famílias deverá ser uma ação do governo, com inevitável impacto fiscal. Pode-se pensar em algo semelhante ao auxílio doença proporcionado pelo INSS, que cubra (até certo limite) salário dos empregados. Esse auxílio é pago inicialmente pelo empregador e após algum tempo pelo governo. Esse período inicial pode ser de duas semanas ou um mês. Não há regra perfeita para esse parâmetro, já que a relação do custo de mão de obra e da receita de vendas varia de setor para setor, assim como as alternativas de trabalho remoto e os efeitos da diminuição da confiança e capacidade aquisitiva dos consumidores na atividade.

É normal que com a crise instalada nas economias desenvolvidas haja fuga de capital do Brasil e queda no preço dos nossos ativos. Em 2008 houve apenas uma “marolinha” por conta da ação decisiva do G-20 em injetar liquidez no mundo, do impulso da China que sustentou o preço das commodities, e do Brasil não só ter bastante reservas internacionais, mas também vários anos de superávit primários. Hoje o choque será maior, mas do lado positivo, a demanda global por alimentos não cairá de forma permanente, e os setores domésticos não têm desequilíbrios sérios, apesar dos desafios para alguns segmentos de serviços. Portanto, liquidez e evitar a desorganização da economia são as chaves para atravessar esse período.

Além dos seguros financeiros, o governo pode ajudar a coordenar o funcionamento de diversos setores da economia, especialmente os essenciais. Garantir que a logística de abastecimento não entre em colapso é uma tarefa de governo, envolvendo uma interação intensa com empresas, sindicatos, e outros Poderes. Na China, para manter setores industriais e outros básicos funcionando ao mesmo tempo em que se protegiam famílias, houve a necessidade de confinar empregados em seus locais de trabalho. Uma interlocução aberta com as instâncias da Justiça do Trabalho e da representação do trabalhador pode ser urgente para se desenharem soluções equilibradas e eficazes. O mesmo deverá se dar para manter o coração dos sistemas de tecnologia da informação, essenciais para o trabalho remoto e o funcionamento dos serviços básicos. Na administração pública, como organizar os trabalhadores da Saúde, garantindo equipamento de proteção adequado e outras condições essenciais de trabalho?

Quanto melhor for o governo na coordenação do funcionamento das áreas essenciais da economia e do setor público, menor serão os gastos fiscais e o impacto negativo sobre o crescimento de longo prazo e o emprego.

Como já está sendo evidenciado, haverá necessidade de muitos suprimentos e equipamentos médicos. A boa notícia é que a indústria brasileira pode contribuir para atender esses problemas ainda que certamente haja hiatos na sua cadeia de suprimento que irão exigir imaginação, agilidade e capacidade de adaptação. O papel do BNDES conectando empresas e as financiando onde necessário pode ser decisivo.

Nenhuma crise é igual a outra, mas vale um paralelo com a crise energética de 2001, ainda que o seu tamanho e complexidade tenha sido muito menor. Após meses de altercação entre agências responsáveis tornou-se indiscutível que faltava água para as usinas hidrelétricas, comprometendo o suprimento de energia. Descartando algumas propostas iniciais draconianas (racionamento de várias horas por dia), o governo identificou a real natureza do problema e procuram-se alternativas com menor custo para a sociedade. Sob a liderança da Casa Civil, apoio do BNDES e alinhamento com a área econômica, identificaram-se os grandes consumidores e criaram-se incentivos para que eles, assim como as famílias, poupassem energia. O objetivo era garantir energia para a miríade de empresas que não gastam muito, mas para as quais a eletricidade é indispensável. Restaurantes, por exemplo, não precisam de muita eletricidade, e deixá-los no escuro desorganiza trabalho fora de casa e gera desemprego, sem reduzir significativamente o déficit de energia.

A Câmara de Gestão da Crise de Energia determinou assim um teto de consumo para cada grande empresa, cobrando uma sobretaxa para quem o ultrapassasse e permitindo a venda do volume de energia abaixo do teto e não consumido. Com esse sinal de preço, criou-se rapidamente um mercado secundário de energia que permitiu o consumo de energia cair 20%, sem que faltasse luz nem um dia ou o PIB do ano tivesse crescimento negativo.

A crise atual é bem mais complexa. Mas se o governo liderar com serenidade e clareza, a resposta das empresas e da população será rápida e construtiva. Venceremos essa crise, com alguns arranhões, mas também melhor preparados. A crise de 2001 não teve um custo fiscal astronômico e criou uma nova dinâmica para o setor elétrico, que se tornou modelo ao redor do mundo e nos preparou para sermos campeões na energia renovável. E as famílias passaram a usar a energia elétrica de maneira mais eficiente e sustentável.

Dá para agir, porque nosso povo nunca decepciona quando o país precisa dele.

Joaquim Levy foi presidente do BNDES