Valor Econômico, v. 20, n. 4963, 19/03/2020. Política, p. A19

Gastos transitórios para choques transitórios

Pedro Cavalcanti
Renato Fragelli


Na segunda- feira, dia 16 de março, o governo anunciou um pacote de R$ 147 bilhões contra a crise desencadeada pelo coronavírus. Diante da enormidade da cifra, os cidadãos leigos em temas econômicos se fizeram muitas perguntas. Se, antes do coronavírus, o governo alegava não haver dinheiro para nada, de onde saíram tantos bilhões? Por que esses recursos já não estavam sendo usados para melhorar a saúde, a educação e a segurança? Uma análise do pacote ilustra as limitações que se auto-impõe um país que se recusa a consertar o telhado em dias de sol, sofrendo as consequências quando chega a chuva.

Após apresentar, durante uma década e meia - entre 1998 e 2013 -, superávits primários em média de 2,5% do PIB, a partir de 2014 o país passou a ter déficits que elevaram a dívida pública bruta de 51% do PIB ao final de 2013 para 76% em 2020. Apesar da disparada da dívida, a taxa de juros exigida pelos mercados para continuar a financiar o Estado brasileiro caiu a seu menor nível histórico. Antes da eclosão do coronavírus, o Tesouro Nacional chegou a vender títulos com prazo de vencimento de 20 anos, pagando uma taxa real de juros de apenas 3% ao ano, metade do valor de apenas quatro anos antes. O fator determinante dessa queda foi a adoção do Teto de Gastos (TG) em 2016, complementado pela reforma da previdência aprovada em 2019.

Conforme já discutido neste espaço, o TG não era a medida ideal para se disciplinar as finanças do país, mas sim a medida possível, numa democracia fragmentada ao ponto de haver três dezenas de partidos no Congresso. Sua finalidade foi forçar a sociedade brasileira, através de seus representantes no Congresso Nacional, a tomar decisões politicamente incômodas, mas essenciais para reverter o desequilíbrio fiscal.

O recente episódio envolvendo a derrubada de um veto presidencial, cuja consequência foi a ampliação do acesso ao BPC, uma renda paga a deficientes e idosos acima de 65 anos, sem nenhuma contrapartida de contribuições prévias, cujo custo anual foi estimado em R$ 20 bilhões ilustra o papel do TG. Para a implantação da decisão, os mesmos parlamentares que a aprovaram terão que decidir quais outros programas sofrerão cortes.

Logo após a eclosão da crise do coronavírus, alguns economistas mais açodados passaram a defender a derrubada do TG, como forma de viabilizar juridicamente uma política fiscal anticíclica. Alguns c propor aumentos de gastos correntes impossíveis de serem revertidos após a superação do surto do coronavírus. Aparentemente nunca leram o texto da emenda constitucional do TG que faz referência ao art. 167 § 3 da Constituição Federal, que prevê abertura de crédito extraordinário em casos extremos, como guerra ou calamidade pública.

A elevação temporária dos gastos com saúde para se combater a pandemia, portanto, é perfeitamente compatível com o TG. Mas o gasto extraordinário não se incorporará permanentemente na definição dos novos tetos para os anos seguintes. Alterar uma regra permanente, como o TG, para enfrentar um choque transitório como o coronavírus seria uma tolice.

Os R$ 14 7 bilhões anunciados esta semana constituem uma reação tempestiva, diante da gravidade da crise, mas não compromete a já precária estabilidade fiscal que será inexoravelmente abalada pela queda da arrecadação. Não havendo espaço para uma política fiscal contracíclica, adotou-se uma política fiscal apenas “antecipativa”. Despesas já previstas para o segundo semestre de 2020 foram antecipadas, como o pagamento em abril e maio do 13º a aposentados e pensionistas, e o desembolso em junho do abono salarial. Novos saques do FGTS foram autorizados, entregando-se a trabalhadores um dinheiro que lhes pertence, mas estava sob guarda do Estado.

O recolhimento de impostos sobre empresas foi postergado - não suspenso, pois não há espaço fiscal para isso -, facilitando-se o fluxo de caixa de empregadores com vendas abaladas. A redução das contribuições ao sistema S por três meses tampouco significa queda de arrecadação para o governo. A exceção foi a ampliação do número de beneficiados pelo Bolsa Família, população cuja alta propensão a consumir contribuirá para sustentar a demanda.

Uma segunda parte da reação ao coronavírus caberá ao Banco Central, que já anunciou medidas destinadas a ampliar a liquidez dos bancos. O tripé econômico em vigor desde 1999 - superávit primário, câmbio flutuante e meta de inflação - implica que, com inflação abaixo da meta e um choque recessivo cavalar, a taxa Selic deve ser corajosamente reduzida, provavelmente a 3% ao ano. O câmbio em alta poderá trazer mudança de preços relativos, mas não elevação permanente da inflação, devido à imensa capacidade ociosa que tende a crescer com o choque recessivo. Os falcões do “mercado” precisam entender que o Banco Central não solapa sua credibilidade quando mostra que acredita na consistência do tripé. Ao contrário, permite à sociedade compreender melhor seu funcionamento.

A crise de saúde atual é sem precedentes. Muito ainda terá que ser feito para proteger as populações mais pobres, garantir que o sistema de saúde funcione bem e impedir uma quebradeira geral. Aumentos transitórios dos gastos na saúde serão necessários. Entretanto, se o país, no passado, tivesse aproveitado os anos dourados do boom de commodities para implantar uma reforma fiscal estrutural, teria mais artilharia para combater a pressão recessiva ampliando gastos. Mas preferiu gastar na construção de estádios de futebol em Estados onde sequer existe campeonato local e financiar campeãs nacionais, explodindo a dívida pública.

Escolhas do passado comprometem o presente inexoravelmente. Muitos dos que defendem agora o fim do TG estiveram envolvidos, de uma forma ou de outra, com a gestação desse descalabro fiscal. Cinicamente, ignoram seus erros e propõem repetir a dose.

Pedro Cavalcanti Ferreira é professor da EPGE-FGV e diretor da FGV Crescimento e Desenvolvimento

Renato Fragelli Cardoso é professor da EPGE-FGV