O Globo, n. 32581, 20/10/2022. Brasil, p. 11

Muro verde rompido

Lucas Altino


Uma das unidades de conservação mais importantes da Amazônia, no arco do desmatamento na fronteira do Mato Grosso com o Pará, o Parque Estadual Cristalino II é alvo de pressão de proprietários rurais e empresas mineradoras. O número de requisições para exploração mineral dentro do parque aumentou 126% neste ano, mesmo período em que ao menos três Autorizações Provisórias de Funcionamento foram concedidas a propriedades rurais que ficam no Cristalino II.

Desde que foi criado, em 2001, a existência do parque é questionada, inclusive na Justiça. Mas ambientalistas alertam que a pressão nunca foi tão grande quanto neste ano, depois que uma decisão do Tribunal de Justiça de Mato Grosso, no fim de 2021, anulou o decreto de criação do Cristalino II.

O tribunal atendeu a um pedido de uma empresa do agronegócio, a Sociedade Comercial e Agropecuária Triângulo. Meses após a decisão, o governo do estado não se manifestou, o que impediu recursos judiciais e tornou a exclusão do parque definitiva em abril. Só em agosto a anulação foi suspensa, depois de o Ministério Público de Mato Grosso ter entrado com embargos de declaração no processo.

Procurada para comentar a disputa, a Secretaria de Meio Ambiente do Mato Grosso não se manifestou. Mas em agosto, havia informado que a Procuradoria-Geral do Estado avaliou que não seria possível recorrer da decisão do tribunal.

61 requerimentos

Nos meses em que o parque esteve legalmente desprotegido, o desmatamento avançou em cerca de 900 dos 118 mil hectares da do Cristalino II. Além disso, um levantamento do Observatório Socioambiental MT apontou que este ano foram enviados 61 requerimentos à Agência Nacional de Mineração com pedidos para autorização de pesquisa e exploração de ouro, cobre e manganês no parque, atividades que são proibidas em terras indígenas e unidades de conservação. O número é quase o dobro de todos os 27 pedidos já feitos ao longo dos últimos anos, para explorações semelhantes.

— Mesmo com a suspensão da decisão (de anular o decreto), o efeito prático, para quem está lá, continua. Até porque o estado não se movimentou, então não há fiscalização e repressão. A inércia se torna uma autorização tácita — afirma Edilene Fernandes Amaral, consultora jurídica e de articulação do Observatório MT. — Esse caso ilustra o movimento de grilagem sobre unidades de conservação, e abre precedente para o desmonte de outros parques.

O futuro do Cristalino está ligado ao avanço da fronteira agrícola em direção ao Norte do país. O Sul da Amazônia, entre Mato Grosso e Pará, considerado o arco do desmatamento, é hoje a área mais desprotegida do bioma e concentrou o maior número de queimadas de setembro.

De acordo com o sistema de monitoramento do Mapbiomas, os dois estados concentraram 59% do total de alertas de desmatamento de toda a Amazônia. Entre agosto de 2021 e agosto de 2022, houve alerta para 933 mil hectares desmatados no bioma. Deste total, 353,1 mil hectares estavam no Pará e 195,7 mil hectares, no Mato Grosso.

Somente no Parque Cristalino II, foram desmatados mil hectares em 2022, de acordo com os alertas do sistema Deter, do Inpe (até o dia 7 de outubro). É quase a metade de tudo que foi desmatado de 2017 ao fim de 2021 (2.670 hectares).

— O Cristalino é um dos parques mais importantes da Amazônia, porque forma um cinturão de proteção. A área é importante para espécies endêmicas (só encontrados no local) da fauna e da flora —explica Edilene, que destaca a possibilidade de sanções que o Mato Grosso pode sofrer. — O Reino Unido discute um projeto para não comprar mais commodities de lugares que investem em desmatamento. Isso prejudica não só quem vai produzir naquela área, como todo o estado.

Na região, já foram identificadas 850 espécies de aves, 50 delas endêmicas. A floresta também é fundamental para regular as chuvas no Centro-Oeste.

— O Cristalino é uma das poucas unidades de proteção integral na divisa do Mato Grosso com o Pará — destaca Angela Kuczach, diretora-executiva da Rede Nacional Pró Unidades de Conservação. —É um muro verde que impede o avanço do desmatamento. Se for retirado, você terá um avanço muito abrupto e forte. Em poucos anos, nessa região, só vai restar o que está em unidade de conservação.

Edilene questiona tanto a inércia do governo estadual diante da anulação do decreto de criação do parque quanto o mérito da decisão da Segunda Câmara de Direito Público e Coletivo do Tribunal de Justiça do Mato Grosso. A decisão, por 3 votos a 2, atendeu a um recurso da Sociedade Triângulo, que há havia havia perdido a disputa em duas instâncias.

Advogado da empresa, que entrou com a ação em 2011, Renato Maurílio Lopes afirma que o decreto não obedeceu a obrigatoriedades como a realização de audiências públicas e estudos técnicos. Edilene, porém, afirma que há um precedente no Superior Tribunal de Justiça que tornou dispensável a realização de audiência pública, a depender das características da unidade de conservação.

Em agosto, no programa Roda Viva, o governador Mauro Mendes (União Brasil) criticou a forma como o parque foi criado e disse que as indenizações pelas desapropriações custariam cerca de R$ 500 milhões. Há diversas ações na Justiça estadual e federal de pessoas e empresas que se dizem proprietárias de terras no Cristalino II.

Titularidade questionada

A distribuição de terras na região remonta a 1971, com a implantação da BR-163. Um decreto transferiu à União todas as terras a 100 quilômetros das margens das rodovias federais na Amazônia. Quando o parque foi criado, além de proprietários acionarem a Justiça pedindo indenização, a própria União questionou a titularidade de várias terras.

Outro levantamento do Observatório MT mostra que há sete propriedades relacionadas ao parque que conseguiram validar suas Autorizações Provisórias de Funcionamento. Duas ficam dentro do Cristalino II. As outras fazem parte de uma nova estratégia de ocupação, diz Edilene.

— Eles declaram APF somente em um polígono fora dos limites do parque. Mas como o governo vai fiscalizar se estão produzindo só fora do parque, se a propriedade tem a maior parte da sua área no lado de dentro? — questiona.

Procurados, o governo do Mato Grosso, responsável por validar as APFs, não se manifestou sobre as licenças concedidas.