Título: Guerra Fria e a lição de Bush
Autor: Joseph S. Nye
Fonte: Jornal do Brasil, 23/10/2005, Internacional, p. A10

O presidente dos Estados Unidos, George Bush, recentemente criou uma analogia entre o confronto com a jihad terrorista e a Guerra Fria. Estava correto em um aspecto: ondas de terrorismo tendem a acontecer em gerações. Infelizmente, como no conflito silencioso que marcou o século 20, a atual ¿guerra ao terror¿ será uma questão de décadas e não de anos. O presidente, no entanto, perdeu outra lição implícita em sua analogia: a importância do ¿soft power¿ da cultura. A Guerra Fria foi vencida pela combinação de poder militar (a deterrência contra a agressão soviética) e o poder das idéias ocidentais. Quando o Muro de Berlim caiu em 1989, martelos e tratores, e não a artilharia, o puseram abaixo. Infelizmente, Bush não aprendeu esta lição. O intercâmbio acadêmico e científico durante a Guerra Fria representou um importante papel no fortalecimento do soft power da América. Enquanto alguns americanos céticos temiam que cientistas e agentes da KGB pudessem roubar segredos tecnológicos, deixaram de perceber que os visitantes aspiravam mais idéias políticas do que planos científicos. Muitos se tornariam, depois, lideranças a favor dos direitos humanos e da liberalização da URSS.

Mais de 50 mil soviéticos ¿ escritores, jornalistas, funcionários de governo, músicos, dançarinos, atletas e acadêmicos ¿ visitaram os EUA entre 1958 e 1998. Aleksandr Yakovlev (N. do Editor: falecido esta semana) foi fortemente influenciado pelos seus estudos na Universidade Columbia, em 1958. Yakovlev retornou para ser membro do Politburo e peça-chave na influência liberal sobre Mikhail Gorbachev. Oleg Kalugin, um dos mais altos postos da KGB, assumiu, em uma conversa em 1997:

¿O intercâmbio foi o Cavalo de Tróia para a URSS. Representou um papel tremendo na erosão do nosso sistema. E continuou infectando mais e mais pessoas ao longo dos anos¿.

Bush fez uma revisão no enorme programa de vistos que cortou muitos intercâmbios, particularmente os com países islâmicos.

A cultura popular foi um ponto forte durante a Guerra Fria. Muitos intelectuais a desdenham devido ao seu comercialismo. Estão errados, porque o entretenimento de massas quase sempre contém imagens e mensagens sobre individualismo, escolhas dos consumidores e outros valores com grande efeito político intrínseco.

O cinema de Hollywood, por exemplo, inclui sexo, violência e materialismo, mas não é tudo. Os filmes também retratam a vida na América, aberta, cheia de mobilidade, individualista, anti-estabilishment, pluralista, populista e livre. Como definiu o poeta Carl Sandburg, em 1961: ¿Como pode Hollywood ser mais importante que Harvard? A resposta é: não é tão limpa como Harvard, mas está quase chegando lá¿.

A linha entre informação e entretenimento não é clara como alguns intelectuais imaginam, mas muito difusa. Algumas letras de músicas populares têm efeito político. Mensagens também podem ser percebidas na forma como equipes esportivas e estrelas se comportam, ou nas imagens pulverizadas pela televisão e pelo cinema. Fotos transmitem valores de forma mais poderosa do que palavras. Mesmo o consumo de fast food pode trazer recado implícito. Como aquela família da Índia descrevendo sua visita ao McDonald´s como um ¿pedaço da América¿. Embora a URSS restringisse e censurasse filmes ocidentais, aqueles que conseguiram ser vistos no país causaram efeitos políticos devastadores. Um jornalista comentou, certa vez, depois de assistir a uma mostra restrita de filmes que criticavam as políticas bélicas nucleares americanas:

¿Ficamos chocados. Começamos ali a entender que as mesmas coisas poderiam acontecer a nós e a eles em caso de uma guerra nuclear¿.

O público soviético que assistia a filmes com temas apolíticos, da mesma forma, viu que as pessoas no Ocidente não esperavam horas em filas para comprar comida, não precisavam viver em apartamentos comunitários e podiam escolher os próprios carros. Tudo isso era uma forma de desacreditar a visão negativa do sistema liberal pregada pela mídia oficial. Até o rock´n roll fez a sua parte. Como reconheceria um dos assessores de Gorbtachev, anos mais tarde:

¿Ouvir os Beatles era a nossa maneira silenciosa de rejeitar o sistema enquanto nos conformávamos à maior parte de suas demandas¿.

Autoridades comunistas da Tcheco-Eslováquia (hoje são dois países separados) condenaram um grupo de 150 pessoas à prisão nos anos 1950 por ¿tocar fitas com a decadente música americana¿, mas seus esforços se tornaram contraproducentes. Em 1980, depois que John Lennon foi morto, um monumento a ele surgiu espontaneamente em Praga e a cada aniversário de morte era o marco para uma passeata pela paz e pela democracia. Em 1988, os organizadores fundaram a ONG Lennon Peace Club, que exigia a saída das tropas soviéticas do país. Era Lennon derrotando Lenin.

A Guerra Fria foi vencida pela mistura de hard power e soft power. Nem todas as fontes desse último foram americanas ¿ basta ver o papel da BBC e dos Beatles. Mas poderia ser um erro ignorar o papel da cultura popular.

Um detalhe precisa ser bem analisado. As culturas da Europa eram mais similares entre si do que são as culturas islâmicas. Em alguns círculos fundamentalistas e entre terroristas, o Ocidente evoca repulsa, não atração. Mas mesmo no Irã, onde os mulás descrevem a América como ¿o Grande Satã¿, os mais jovens assistem filmes de Hollywood em casa. Pesquisas realizadas no mundo islâmico mostram que a produção cultural dos EUA é um elemento de atração para a maioria moderada. É a política americana que leva à impopularidade. Bush deveria aprender a sair do caminho e encorajar maiores e mais freqüentes contatos entre os povos. (Project Syndicate)